sábado, 25 de julho de 2009

Sobre a condição humana


O que é realmente importante para nós?
O significado da condição humana, sem querer parafrasear Hannah Arendt, mas inspirado em Schopenhauer, está intrinsicamente relacionado com o que efetivamente somos no campo subjetivo. A minha percepção da realidade é o que importa e o que é carregado de significado. Aquilo que possuo, minhas posses e bens, são voláteis e, se são exteriores a mim, nada acrescentarão de fato em minha existência. Se possuo um automóvel ele se torna um veículo de transporte, que pode facilitar minha vida no sentido de possibilitar meu trânsito pela cidade. Pode também representar um certo prestígio em uma sociedade de consumo onde a representação que se faz de minha pessoa está relacionada com a propriedade do veículo. Porém, no sentido da minha condição humana, vale a percepção que tenho daquilo que possuo. Quero dizer com isso que minha felicidade ou alegria não está, necessariamente, atrelada à propriedade de um objeto material, exterior. É minha percepção que importa e, desta forma, esta se constitui em um dado subjetivo. Posso estar infeliz mesmo possuindo bens materiais e, outra pessoa qualquer, desprovida desses mesmos bens, pode se sentir feliz e realizada. O nível de contentamento não é objetivo porque está relacionado com a percepção que cada um tem de si mesmo em um determinado contexto.
Uma ação de alguém pode ser, para mim, algo que tenha produzido muito prazer para a pessoa que a realizou. Porém, essa mesma pessoa pode estar arrependida de ter realizado tal ação ou mesmo ser infeliz por tê-la realizado. Não se trata, desse modo, de eu querer copiar o que o outro fez, reproduzir sua ação na totalidade, para que eu seja feliz, pois é apenas um pressentimento de uma sensação de prazer, alegria ou felicidade pelo ato do outro mas que para o outro pode ter tido um significado diferente.
Será possível medir ou identificar minha felicidade pelas ações alheias? Ou então, será possível caracterizar minha vida e minhas escolhas pelas representações que os outros fazem daquilo que escolho e realizo? Essa é uma questão essencial na minha argumentação, pois sou eu e somente eu que devo determinar o significado de minhas ações e não pautá-las pelas opiniões alheias ou pelas escolhas das outras pessoas.
A imagem que escolhi, fotografada por Sebastião Salgado tem o significado do desespero diante da nossa condição existencial. Não quero simbolizar na imagem qualquer relação entre riqueza e pobreza material, mas entre riqueza e pobreza de espírito. Schopenhauer afirmou que um camponês com saúde é muito mais feliz do que um rei doente e em nada invejaria a condição do rei, pelo contrário, sentiria pena dele e de todo o sofrimento que carrega. Diante da condição alheia não cabe a mim o desespero, como a representação da foto em que a mulher está com as mãos sobre a cabeça em postura reflexiva, em minha percepção subjetiva, em relação à sua própria vida. A condição humana, dessa forma, deve ser determinada pela percepção que cada um tem daquilo que faz e de suas próprias escolhas. Pouco deve importar o que possuímos materialmente (porém, nesse ponto concordo com Schopenhauer, não se trata de abstrair uma condição material de absoluta miséria e, desta forma, agir no sentido de garantir uma condição de satisfação material minimamente desejável e confortável), menos ainda a opinião que os outros têm sobre nós mesmos, mas o que efetivamente somos, mesmo que em uma condição de transitoriedade constante, um eterno vir-a-ser, o "penta rei" ("tudo passa") de Heráclito, em uma situação presente e desejável por nós.
Não quero invejar as escolhas alheias, pois tenho minhas próprias e singulares escolhas e é em relação a elas que devo me sentir feliz ou infeliz. De fato, o que me interessa é a possibilidade de determinar minha própria condição humana naquilo que ela representa em relação a minha subjetividade. As escolhas alheias não podem me parecer satisfatórias, pois o outro, que as fez, pode tomá-las como um inferno de vida e, pelo contrário, me parecer o paraíso. Então, nada deve me importar a não ser aquilo que efetivamente faço e realizadamente sou.
Enfim, para que minha condição humana produza em mim mesmo a sensação de completa realização, ela não deve estar relacionada com o que possuo materialmente nem com a opinião dos outros a meu respeito e, muito menos, pautada nas ações alheias, mas singularmente referirem-se a minha própria pessoa e opinião. Só para lembrar Nietzsche, não devo arrepender-me de nada do que fiz no passado e viver o presente como se fosse em si mesmo uma eternidade.

domingo, 12 de julho de 2009

Memórias da cana


Estou de férias!!! De repente, sexta passada, fui para São Paulo ver minha filha e, como sempre, fomos ao teatro. Fomos ao teatro da companhia "Os fofos encenam" ver a peça na qual ela foi estagiária, "Memórias da cana". Simplesmente impressionante!!!
A direção é do Newton Moreno, não precisa dizer mais nada. Porém, como esse é o meu espaço para escrever, direi algumas coisas. Logo que chegamos o cenário me impressionou muito. Uma casa grande, no estilo daquelas casas descritas pelo Gilberto Freyre no livro "Casa grande e senzala". O público fica ao redor do espaço onde a peça é encenada. O palco, central, é dividido por cortinas transparentes que simulam os cômodos da casa e, no centro, uma grande mesa onde os atores interagem. No início da peça os atores, devidamente caracterizados em seus personagens, encontram-se nos cômodos ruminando palavras, digressões sobre o caráter de suas personalidades, pensamentos em voz alta sobre a visão que cada um tem daquela família patriarcal.
Não vou me alongar na descrição, mas a família patriarcal é um traço histórico marcante no nordeste brasileiro, onde a figura do pai, o senhor de engenho e proprietário de terras exerce uma função de poder desmedido, quase absoluto, sobre a esposa, os filhos, os agregados e, no caso de ser o contexto anterior à 1888, em relação aos escravos.
A peça é inspirada na obra de Nelson Rodrigues "Álbum de família", escrita nos anos 1960 e dirigida como crítica à classe média carioca. Porém, os arquétipos da família patriarcal permanecem e, nesse caso, a trasposição do texto rodriguiano para o interior pernambucano não interfere em nada na percepção psicológica e sociológica dos valores dominantes.
As personagens são estereótipos de singularidades humanas que representam o contexto da família patriarcal.
O pai, a personagem Jonas, é um homem autoritário e que domina a família por meio da violência física e moral. É um hipócrita, pois ao mesmo tempo que exerce uma vigilância constante sobre o comportamento dos parentes, "compra" de um cafetão meninas adolescentes de 13 ou 14 anos, virgens, para deflorá-las na própria casa, sendo que a esposa e os filhos sabem do fato. Ele próprio, em uma noite em que estava bêbado, estupra a própria cunhada. Na verdade, existe um desejo incestuoso do pai em relação à filha Glória, que foi enviada para um internato católico, como um repositório de virtudes castas, mas que é expulsa do mesmo por ter tido um envolvimento homossexual com uma das colegas. Parece-me que, na perspectiva psicológica, o pai deflora adolescentes negras virgens por não poder deflorar a própria filha. Esse é um aspecto trágico da peça.
A esposa, da qual não se sabe o nome, pois é apenas chamada de "senhorinha", é uma mulher sensual mas que, pelo fato de ter casado sem amor ou paixão, torna-se fria no casamento, servindo apenas de procriadora da prole que irá, um dia, herdar a fazenda. "Senhorinha" teve um envolvimento incestuoso com um dos filhos, Nono, que enlouqueceu. Porém, a loucura de Nono parece-se como uma convulsão dionisíaca, um espetáculo de sensualidade que a todo instante percorre o cenário e as personagens.
Há uma tia, a Ruth, solteirona, que foi estuprada por Jonas e que vive exclusivamente para ele, tratando-o como um rei. Mulher ressentida, pois é vista por todos como uma mulher feia, sem nenhum atrativo sexual, sofre em sua solidão e em sua dependência em relação à família que, na verdade, a desconsidera. Ruth é uma personagem emblemática, enterrada em seu catolicismo tradicionalista e, ao mesmo tempo, recalcada por sua condição de mulher indesejada sexualmente.
Um dos filhos, Edmundo, recém-separado, viveu três anos com a esposa sem tê-la tocado. Na verdade, Edmundo nutre um desejo incestuoso em relação à mãe e, desta forma, odeia o pai. Contardo Calligaris no último Café Filosófico discorreu sobre o ciúme inconsciente do filho em relação ao pai pelo fato deste ter tido relação sexual com a mãe, desejada edipianamente, para que o próprio filho nascesse. Quando Edmundo fica sabendo da própria mãe que ela teve um amante, se porta como se consentisse o pai para que este matasse o violador da "sacrossanta" castidade materna que, no fundo, ele queria só para si.
Guilherme, que seguia os passos sensuais do pai, mulherengo e viril, entra para o seminário e se automutila, castrando-se. Retorna para casa para anunciar a relação homossexual de Glória e sua expulsão do colégio interno. É uma figura patética, pois sua expressão de alívio em relação ao desejo sexual, já que é agora castrado, se confunde com a própria amargura de ter renunciado ao mundo.
Glória, a filha casta, nutre um desejo incestuoso em relação ao pai, que compara com a figura de Jesus Cristo crucificado. Recusa-se a reconhecer tanto a hipocrisia paterna quanto a realidade cruel das relações familiares. Sua morte, assim como a morte de Edmundo, revelam que a idéia de família presente não corresponde às práticas cotidianas de violência e agressão.
Enfim, não quero contar a peça como um todo mas, a partir dessa singela descrição das personagens e de suas relações instigar o leitor do meu blog a ir assistir ao espetáculo e, ao se sensibilizar com a atuação brilhante dos atores, enxergar-se no patriarcalismo presente no palco, visto que o mesmo, como valor dominante da sociedade brasileira, impõem-se ainda no presente em uma dimensão disfarçada de liberdade e respeito à alteridade mas que, na verdade, transforma o espaço familiar urbano ou rural do Brasil atual em um palco de inquietudes e relações de poder e dominação que se antagonizam com um desejo idealizado de construção de uma sociedade mais justa e capaz de tornar as pessoas felizes.
Parabéns ao grupo "Os fofos encenam" pela coragem de, ao adaptar Nelson Rodrigues, produzir uma obra que no atual momento do contexto teatral brasileiro, passa a ser uma referência de dramaturgia e interpretação.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Educação, avaliação e notas


Minha amiga Sonia, que tanto prezo, me mandou a imagem acima. Como ela é Pedagoga e especialista em Educação e logo estará se doutorando pela Ufscar, levo a sério toda e qualquer manifestação que faz a respeito desse assunto. Permito-me tecer algumas reflexões sobre a imagem. Há quarenta anos atrás os pais, ao lado da professora autoritária, questionam o filho humilhado sobre as notas que tirou. Hoje, em 2009, os pais, aliados do filho arrogante, questionam a professora: como a senhora (ou você mesmo!) teve a coragem de dar essas notas para meu filhinho?
Pois bem, fora o humor presente na gravura, há uma questão muito importante para ser analisada. Como a família, o aluno e o professor percebem a nota da avaliação?
Penso que se dá muita importância para notas. Em uma sociedade competitiva e individualista, todos querem ser os primeiros e, desta forma, tirar a melhor nota não significa ter mais conhecimento, mas ser superior aos outros alunos. Esse é o retrato de satisfação da nota tirada na escola.
Porém, o que a sociedade não percebe, e muitos educadores também não, é que a nota é um dado quantitativo, uma representação apenas, do que deveria ser um processo de avaliação contínua da aprendizagem. Na verdade a escola poderia passar muito bem sem as notas. Quero dizer com isso que o educador deve realizar seu trabalho ensinando e avaliar, constantemente, os seus alunos para verificar se ocorreu ou não a aprendizagem. Não ocorrida a aprendizagem, deve-se dar a oportunidade do aluno recuperar, ou seja, ter novamente o ensino, de forma criativa e modificada, para a realização da aprendizagem. O professor quer que o aluno aprenda! O professor não quer que o aluno "tire nota"!
Depois da recuperação, nova avaliação e se for constatada a aprendizagem o aluno será aprovado e fim de papo. A nota, um número qualquer, incentiva a competição entre os alunos e dá ao professor que não sabe avaliar um poder que não lhe cabe.
Para quê o professor quer ter esse poder? Para sublimar suas frustrações pessoais ou se sentir superior aos outros? Que bobagem... O professor deve se satisfazer com o aprendizado de seu aluno. Não tem cabimento um professor se regozijar ao dizer para os demais colegas que "deixou" a maioria dos alunos para exame! Isso é um absurdo, para não dizer uma psicopatia...
Enfim, tanto no quadrinho de 1969 quanto no de 2009 há um grande equivoco. Nota não serve para nada de relevante. O que realmente importa é a aprendizagem e ao professor cabe verificar constantemente se seu aluno está aprendendo por meio de avaliações e, se isso não for constatado, dar a ele a oportunidade de se recuperar, de aprender realmente e, para verificar se isso foi conseguido, novas avaliações. A avaliação deve ser uma aliada do professor no processo de verificação da aprendizagem do aluno.

A questão social em São João


Desde que cheguei à São João da Boa Vista pela primeira vez, em 1981, que ouço infindáveis discussões sobre os problemas econômicos da cidade como, o desemprego, a baixa renda, a estagnação econômica etc. Os jornais da cidade, com grande déficit de capacidade crítica, exaltam horizontes no campo da indústria e na formação técnica dos trabalhadores locais em escolas especializadas, como se isso fosse um elixir para resolver a questão social da cidade. Os órgãos públicos, em especial o executivo e o legislativo, em diversas épocas, falam sempre na questão social como um problema a ser resolvido de forma assistencialista, com a criação de políticas públicas de ajuda à população de baixa renda ou sem renda alguma e, ao mesmo tempo, afirmam a importância da reformulação urbanística da cidade para a criação de distritos industriais e de políticas de incentivo a instalação de indústrias na cidade.
Creio que todas essas posições são equivocadas. Parto da constatação de que a cidade sofreu e ainda sofre um êxodo rural muito grande, de milhares de famílias de antigos trabalhadores rurais, pequenos proprietários, colonos, assalariados etc, que pelo fato de não terem condições de continuar no campo migram para a periferia da cidade, gerando problemas de gestão pública gravíssimos.
O fato é que a terra no município de São João da Boa Vista está concentrada nas mãos de poucas famílias que as mantém, de maneira geral, improdutiva. São imensas áreas agriculturáveis que poderiam estar produzindo alimentos e renda para os trabalhadores desempregados da periferia e que simplesmente estão abandonadas. Muitos proprietários rurais arrendam sua terra para a indústria da cana. Outros criam gado de forma extensiva. Outros ainda se dedicam ao plantio do café, do algodão, da batata etc e contratam a mão-de-obra da periferia por uma remuneração muito baixa.
Como seria o município se, efetivamente, o poder público local, estadual e federal, realizasse uma política séria de distribuição da terra? Milhares de famílias que hoje estão desempregadas ou sub-empregadas voltariam para o campo, como pequenas proprietárias. Iriam desenvolver uma agricultura alimentar para fornecer produtos para a cidade e região, barateando o custo de vida e, por meio de uma organização coletiva com base em cooperativas de pequenos agricultores, teriam acesso ao crédito e aos implementos agrícolas necessários ao desenvolvimento de suas propriedades. Além disso passariam a ter uma renda capaz de torná-los consumidores do comércio local que, por conta disso, se expandiria e passaria a oferecer mais empregos para aqueles que não voltaram para o campo.
As escolas técnicas locais parariam de oferecer cursos inúteis de informática e passariam a ministrar cursos ligados aos temas agrícolas. Não podemos esquecer que a cidade possui uma faculdade de medicina veterinária e que a pouco mais de vinte quilômetros, na cidade de Espírito Santo do Pinhal, há uma faculdade de engenharia agronômica. Fora o fato de termos na cidade um órgão público estadual, a "Casa da Lavoura", com técnicos especializados que ajudariam os novos pequenos proprietários rurais a desenvolverem racionalmente o uso de suas terras.
Com a modernização dos meios de transportes e das rodovias que dão acesso a cidade, ocorrida há poucos anos atrás, a produção poderia ser, em parte, escoada para os grandes centros, tão carentes de produtos alimentares. O esforço industrial da prefeitura local poderia ser dirigido para a criação de uma indústria de alimentos que ofereceria a possibilidade de agregar valor aos produtos agrícolas "in natura" produzidos nas pequenas propriedades, contribuindo para a melhoria da renda dos pequenos agricultores.
Problemas de segurança pública seriam minimizados, pois com trabalho e renda, além de acesso a educação e saúde, essas milhares de famílias não estariam mais à mercê dos traficantes de drogas e do crime organizado locais.
Enfim, um esforço que se baseia na tomada de uma posição política consciente, iria transformar radicalmente o perfil social da cidade de São João da Boa Vista e, desta forma, a questão social seria resolvida de forma satisfatória.
Porém, não sei qual a razão, não se discute na cidade nada que tenha relação à forma de ocupação da terra, a migração forçada de milhares de famílias de trabalhadores rurais e nem as possibilidades de criação de renda com base na produção agrícola familiar cooperativada.
Desta forma, fica aqui em meu blog, minha constatação e reflexão sobre a questão social em São João e sua relação direta, a meu ver, com o problema fundiário.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Da amizade e do conhecimento


Eis um quadro do pintor impressionista Claude Monet. É um campo de papoulas. Flores em carmim, vivas e exuberantes como a amizade. Não concebo o ato da aprendizagem do conhecimento sem a presença constante da amizade pelos que o compartilham comigo. Em minha prática docente procuro sempre cultivar a amizade em relação aos meus colegas e aos meus alunos. O afeto, oriunto do gesto amigo, se traduz pela aceitação do diálogo, da interlocução, prazeirosa e alegre, em diversos momentos do convívio.
Sem a amizade o processo de aprendizagem se mostra pouco virtuoso, duro e difícil, porque o outro, uma necessidade de interlocução, se torna mudo e não disposto a compartilhar o saber/sabor da arte de conhecer.
Em minha adolescência aprendi a amar o saber por intermédio de minha querida Alaíde Taveiros, a Tia Lá, como meus primos a chamavam. Uma mulher adiante do seu tempo, que se bacharelou em Direito pelo Largo de São Francisco em 1939 em uma turma predominantemente masculina, em meio a uma sociedade patriarcal, mesmo na metropolitana São Paulo dos anos 1930, tão bem descrita por Mário de Andrade em seu livro de poesias "Paulicéia Desvairada".
Oriunda do Vale do Paraíba, da cidade natal de Monteiro Lobato, Taubaté, a Tia Lá era uma figura generosa. Doutorou-se com uma tese sobre os "Quadros Econômicos" do fundador da fisiocracia francesa François Quesnay por pressão da academia, a Universidade de São Paulo, em plena ditadura militar. Teve como referência epistemológica o livro magistral de Michel Foucault "Les môts et les choses", que hoje encontra-se em minha biblioteca. Essa mulher baixinha e brilhante leu Foucault no que há de mais interessante em sua obra, o trabalho de arqueologia do saber, antes mesmo desse autor morto em 1984 adentrar nas universidades brasileiras. Tornou-se professora assistente do historiador da economia Paul Hugon. Diante de um público pretensamente militante, pois encontrava-se no momento em plena ditadura militar, relutou em ceder espaço das suas aulas às atividades panfletárias. Assegurava, em pleno regime de excessão, a excelência do conhecimento, levando com rigor e seriedade o processo intelectual de construção do saber. Não que fosse adepta do regime militar, muito pelo contrário, mas achava que o espaço da militância devia se dar fora da sala de aula. Não admitia fraudes no conhecimento, perda de oportunidade de conhecer e formar intelectuais em nome da mobilização estudantil. Se dispôs a participar de passeatas no centro de São Paulo em nome da democracia, mas que isso se desse fora do horário de aula!
Lembro-me de inúmeros domingos em que descia para Santos, para visitar meus tios e primos que moravam em São Vicente e trazia, religiosamente, o Suplemento Cultural do Estadão. Eu tomava o ônibus no canal 2, perto de minha casa, e ia para a casa de meus tios passar o domingo ao seu lado. Meus primos iam para a praia do Itararé, que ficava na frente do apartamento e sempre me perguntavam: Paulinho, você não vai à praia conosco? Sentado ao lado da Tia Lá, recusava o convite prazeirosamente, pois tinha ao meu lado alguém muitíssimo mais importante do que uma praia ensolarada. Tinha Tia Lá e seu suplemento cultural! Eu respondia à pergunta de meus primos displicentemente: É claro que irei à praia, mas no final da tarde, para jogar futebol! Ninguém entendia nada.
Em São Paulo, o apartamento da Tia Lá era um primor. Ficava na Rua das Palmeiras, em pleno Santa Cecília. Ia visitá-la frequentemente e ela, como uma boa macrobiótica, me oferecia no almoço arroz integral, suco de laranja com bagaço, uma enorme variedade de legumes e uma pitoresca gelatina de carne! Isso tudo regado a levedo de cevada...
Mesmo após minha vinda para o interior de São Paulo, viajava para São Paulo sempre que podia, pois sua opção pelo pragmatismo (ela estava traduzindo John Dewey antes de sua morte) me possibilitou uma aproximação com a semiótica de Charles Sanders Pierce, que tanto me ajudou na compreensão do mundo linguístico do século XX.
Em 1985 Tia Lá se desintegrou. Digo isso porque uma vez perguntei a ela o que pensava sobre a morte. Ela me respondeu, quase que epicuramente, que a morte é simplesmente a desintegração molecular e a eternidade se encontra nos posteriores encontros e simbioses de nossas moléculas e átomos com as moléculas e os átomos de outros seres da natureza. Estaremos sempre presentes nesse planeta por meio da bioquímica. Que materialismo mais corajoso, já que vinha de uma família tradicionalmente católica.
Restou-me a lembrança de nossas conversas, seu afeto e carinho por mim e a minha eterna gratidão por sua imensa generosidade.
Voltei a encontrar a amizade e sua relação com o conhecimento com meu querido, agora octagenário, José Cardoso de Freitas. Um intelectual perdido nos rincões da serra da Mantiqueira. Historiador da Roma republicana (leu Tito Lívio no original em latim), fez seu mestrado sob a orientação do baluarte da historiografia clássica no Brasil, o já falecido Ulpiano. Nossas conversas no antigo bar Canecão e nossos passeios ao redor da praça Joaquim José, aqui em São João da Boa Vista, revigorou meu gosto pela História. Foi ele quem me incentivou a penetrar no universo da memória coletiva e do passado a ser descoberto. Minhas posições na época, no início dos anos 1980, eram sabidamente de esquerda. Uma esquerda radical como ele me falava, pois vinha de um ensino médio de militância estudantil na UBES de Santos. Estávamos no final da ditadura militar e ele, em sua sábia paciência, apostava na social democracia como via de solução dos problemas políticos nacionais. Eu pensava na época na revolução proletária! Mesmo diante de conflitos em relação às nossas idéias políticas, nutrimos naquela época e até hoje uma profunda amizade onde a lucidez e a transparência se faziam necessárias e fundamentais para que pudéssemos construir juntos o conhecimento. Ainda hoje o encontro, solitário, nas ruas da velha São João. Apesar da idade, ainda se mantém disposto ao diálogo e suas citações factuais da História me ajudam a ilustrar o cenário do passado... É com gratidão que lembro-me aqui desse querido amigo.
Já adulto, tive a oportunidade de conhecer há 10 anos atrás, na PUC de Campinas, uma mulher magnífica que se tornou minha orientadora no mestrado em Filosofia. Minha querida amiga e companheira no campo do conhecimento filosófico, Maria Cecília Maringoni de Carvalho. Suas aulas sobre Searle e a filosofia da linguagem, suas palestras sobre o utilitarismo em suas vertentes contemporâneas e suas abordagens sobre o campo da Ética, tanto em sala de aula, como em suas palestras, dignificam a atividade do magistério. Sua generosidade é grandiosa. Apesar de ser extremamente atarefada, presenteou a Unifeob com um artigo brilhante sobre o cuidado que devemos ter com os animais, quando ainda na instituição não se falava da criação de um comitê de Ética. O artigo foi publicado no Caderno de Ciências Sociais e sua palestra no Centro Cultural foi assistida por mais de duzentas pessoas, entre alunos, professores e público em geral.
Maria Cecília é um paradigma para a Filosofia brasileira na atualidade. Suas inúmeras participações em bancas de mestrado e doutorado em diversas universidades brasileiras demonstram o carinho e a importância dedicados a ela por todos aqueles que têm na Filosofia um campo de conhecimento privilegiado. Ela tem, generosamente, acompanhado, mesmo que à distância, meu trajeto intelectual e pessoal por todo esse período de dez anos em que somos amigos. Quando eu fazia minha pós-graduação em Política e Relações Internacionais em São Paulo, não deixava de ir me ver. Levava-me para comer meu prato predileto, o atum grelhado, em Higienópolis. Eram momentos gastronômicos saborosos, regado com discussões filosóficas que, é claro, ela dirigia e eu, humildemente, usufruia. Verdadeiros "symposiuns"... Minha querida professora, como a chamo sempre que nos falamos, é para mim uma referência fundamental para a compreensão da importância da amizade para o conhecimento.
Para essas três pessoas magníficas e importantes em minha vida pessoal e intelectual, escrevo essas linhas em meu blog com o intuito de homenageá-las e, ao mesmo tempo, entusiasmar a todos os que lerem esse texto a se deixarem abertos às possibilidades de relacionamento humano digno e significativo, e não se deixarem levar por relações sociais e pessoas que nada acrescentam em nossas vidas. Cultivemos a virtude da amizade e utilizemos a mesma para agregar valor em nós próprios e, desta forma, nos tornarmos seres humanos melhores. Aos três queridos mestres meus mais sinceros e profundos agradecimentos. Eternamente...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Comemoração da Revolução Constitucionalista de 1932













No próximo dia 9 de Julho haverá um feriado no estado de São Paulo. Muita gente não sabe porque esse dia é comemorado. Trata-se da data de início da Revolução Constitucionalista de 1932. Na época Getúlio Vargas estava no poder e, a partir do Rio de Janeiro, governava "provisoriamente" o país. Tinha tomado o poder com a Revolução de 1930 contra a vitória do candidato Júlio Prestes nas eleições presidenciais, pelo Partido Republicano Paulista. Getúlio tinha se candidatado pela Aliança Liberal, que somava diversos grupos políticos contrários ao poder das oligarquias paulistas desde a eleição de Prudente de Morais para presidente, em 1894.
A República Velha chegou ao fim e, no lugar dela, o Brasil era governado de maneira ditatorial por Getúlio Vargas. Este nomeou interventores para governar os estados. São Paulo era governado por um interventor que não foi eleito pelo voto direto da população paulista. Getúlio, percebendo o descontentamento, nomeou um substituto, o político Pedro de Toledo, paulista, mas que não conteve o descontentamento da população.
Desta feita, diversos setores da sociedade paulista se organizaram para lutar contra o governo de Getúlio Vargas e exigir eleições presidenciais e uma nova Constituição para o país. Apesar das oligarquias de São Paulo terem se aproveitado do movimento para a retomada do poder político, os historiadores atualmente concordam que o movimento teve bases populares e na classe média e pretendia restaurar na visão de uns e implantar na visão de outros historiadores, a democracia no país por meio da criação de um Estado Democrático de Direito.
São Paulo ficou só nessa guerra que deixou um saldo de 634 mortos e 1.273 feridos. Porém, apesar de derrotado militarmente, nós paulistas conseguimos que Getúlio convocasse eleições para a criação de uma Assembléia Nacional Constituinte e, nessas eleições, pela primeira vez a mulher passou a ter o direito de votar.
Enfim, o dia 9 de Julho é importante para a memória histórica de São Paulo, como um estado baluarte que lutou pela democratização do Brasil. Não se trata de construir uma memória de heróis, como idolatrar os quatro jovens assassinados pela polícia de Getúlio (Mário Martins, Euclides Miragaia, Dráusio de Souza e Antônio Camargo). Trata-se de salvaguardar a memória do povo de São Paulo em relação à sua luta pela democracia e pelos valores constitucionais, contra a tirania de Getúlio Vargas que, depois de ser eleito pelo voto indireto presidente em 1934, deu um golpe de estado e implantou uma ditadura institucionalizada no país, a partir de 1937, denominada "Estado Novo".
Se pensarmos na necessidade de mantermos os valores democráticos e constitucionais no Brasil atual, devemos aproveitar a oportunidade para lembrar-mos da guerra que nos anos 30 ocorreu em nome desses valores.

sábado, 4 de julho de 2009

Não deixe o amor passar



















"Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento,houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d’água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente: O Amor.
Por isso, preste atenção nos sinais - não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O AMOR" (Carlos Drummond de Andrade).
*Para Carmen...

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O grito





















O famoso quadro "O grito" foi criado pelo pintor norueguês Edvard Munch, que nasceu em 1863 e morreu durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944. Munch foi um dos precurssores do expressionismo, uma proposta estética que tinha na subjetividade e na angústia diante das incertezas do mundo seus principais inspiradores.
Para ele, a arte era um meio de se lutar contra a sociedade, mas também contra os horrores existenciais que tanto permeavam a passagem do século XIX para o século XX, como a dor, o sofrimento, a doença e a própria morte. Ele mesmo era um homem que vivia doente e tinha ressentimentos em relação à sua infância pelo fato de sua mãe ter morrido quando ele tinha apenas cinco anos e sua irmã mais velha quando ele era adolescente.
Munch sempre esteve atento para a fragilidade do ser humano e sua condição de finitude, de transitoriedade diante da vida. Essa percepção da pequenez humana, de sua existência marcada pelo medo e terror em relação a natureza e o sobrenatural, mas também em função de estar condicionado por uma socieadade em transição, marcada pela presença do urbano, da massa, da invisibilidade e do non sense, traduzem-se em sua obra a partir do reconhecimento de que o homem, apesar de ser um "caniço pensante", como afirmou Pascal, era na verdade não um sujeito no mundo, mas uma consequência do próprio mundo, subordinado às suas incertezas e às suas próprias paixões subjetivas que nunca seriam de todo satisfeitas. A condição humana para Munch era a de um ser destinado ao vazio existencial que, segundo Schopenhauer, se caracterizava pela dor e o sofrimento produzidos pelo desejo e, ao tê-lo satisfeito, a sensação de nadificação proporcionada pelo tédio e, mais uma vez, a dor de um novo desejo, ou no dizer de Schopenhauer, a "vontade".
O quadro "O grito" foi pintado por Munch com trinta anos de idade. É considerada sua principal obra e uma das mais importantes do movimento expressionista. O quadro retrata a angústia e o desespero e foi inspirado nas decepções do artista tanto no amor quanto com seus amigos e, desta forma, atesta a singularidade de sua sensibilidade diante da solidão inerente à condição humana. Seu envolvimento com uma mulher casada, que lhe trouxe mágoa e desespero e o rompimento de relações com seu pai que, durante sua infância foi terrivelmente cruel com o jovem Munch por meio de ações autoritárias e castradoras, são de fundamentais importância para a compreensão do desespero que aparece na figura do quadro.
A falta de um fundamento para a existência, que empobrecida pelas frustrações das relações sociais e amorosas, se traduz pelo desespero. Essa questão do desespero pode ser entendida de outra forma se recorrermos a uma tradição filosófica nietzschiana, pois o desespero é condição necessária para a superação do homem e a construção de uma extra-moralidade. Porém Munch se revolta contra a ausência de esperança e não afirma a vida, mesmo diante de tantas muralhas e obstáculos para a felicidade.
"O grito", que no original norueguês se chama "skrik", foi pintado em 1893. A figura representada no quadro e que, por um mal gosto indescritível, virou máscara de filmes de terror para adolescentes como "Pânico", representa uma figura andrógina num momento de profunda angústia e desespero existencial. O pano de fundo é a doca de Oslofjord, na cidade de Oslo, capital da Noruega, durante o pôr-do-sol.
Munch escreveu em seu diário pensamentos que revelam a inspiração que teve para a criação do quadro: "Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol, e o céu ficou de súbito vermelho cor de sangue. Eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta. Havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade. Os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade e senti o grito infinito da natureza".
Segundo o especialista na obra de Munch, Robert Rosenblum, a fonte de inspiração imediata para a figura andrógina de "O grito" foi uma múmia peruana que Munch viu na exposição universal de Paris em 1887.
A primeira exposição do quadro ocorreu em 1903, como parte de um conjunto de seis peças, intitulado "Amor". A idéia de Munch era representar as várias fases de um caso amoroso, desde o encantamento inicial até a ruptura final dramática. Nesse sentido, "O grito" representa a última etapa do envolvimento amoroso, envolvida em sensações de perda, de ausência, de solidão, de fragilidade, de desespero e de angústia.
O quadro em si apresenta ao fundo um céu de cores quentes, em oposição ao rio em azul, uma cor fria, que sobe acima do horizonte. Há uma figura humana também representada em cores frias, o azul, a cor da angústia e da dor. Um detalhe importante. A figura andrógina está sem cabelo e isso revela o seu estado de saúde precário, doentio. A maioria dos elementos descritos estão tortos, sinuosos, sem exatidão, como que estivessem reproduzindo o grito dado pela figura, como se o berro angustiado da figura andrógina tivesse a força e o impulso de entortar o mundo, como uma repercussão das ondas sonoras produzidas pela boca aberta em desespero.
Somente a ponte e as duas figuras humanas apresentadas no quadro não estão tortas. Todo o universo se abalou com o grito angustiado do ser andrógino, menos os supostos "amigos" e a ponte que, para o autor, não são elementos naturais. Os "amigos" pela sua falsidade e hipocrisia e a ponte por ser feita de concreto.
O quadro que revela o grito desesperado produz uma dor não somente em quem deu o grito, mas também na natureza e, desta forma revela a subjetividade de seu autor e, ao mesmo tempo denuncia a indiferença do grito desesperador em relação a quem está observando pois, a dor que é sentido por uma pessoa não é sentida pelas demais e, desta forma, não se tem uma comunicação nem uma solidariedade ou talvez mesmo compaixão por parte dos outros. Essa indiferença alheia é a causadora da maior dor e da maior angústia, mais do que o fator primário que produziu o grito, pois revela uma humanidade desprovida de simpatia e de capacidade de se sensibilizar com a dor alheia. Pelo contrário, o quadro "O grito" revela, no fundo, que a sociedade contemporânea é profundamente individualista e egoísta e, neste sentido, trata a questão do sofrimento como algo que traduz a condição solitária à qual todos nós, querendo ou não, estamos vivendo nossas existências.
Que a dor manifestada por "O grito" traga um pouco se sensibilidade para os corações dos homens e que produza por meio da compaixão um espírito de solidariedade e fraternidade tão caros à nossa condição de existência humana mas, ao mesmo tempo, tão ausente em tempos de cólera e horrores marcados pela história.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Como está o ensino médio no estado de São Paulo?















A situação atual do ensino médio no estado de São Paulo é de crise de identidade. Para se refletir sobre a realidade da educação nesse momento importante da educação básica é necessário separar o ensino privado do ensino público.
Começo pela análise do ensino privado em que lecionei por quase vinte anos.
As escolas particulares, a partir dos anos 1980, passaram a adotar os sistemas de ensino que são grandes empresas capitalistas que apresentam os conteúdos das diversas disciplinas no formato de apostilas. Praticamente não são utilizados mais livros didáticos e paradidáticos no ensino médio privado.
Nesse sentido, existe uma padronização do ensino, onde o conteúdo é priorizado e o professor nada mais faz do que repetir, de forma não crítica e não reflexiva, o conteúdo disponibilizado pela apostila, no formato de aula 1, aula 2, aula 3 e assim por diante.
Os alunos possuem um texto específico por aula e uma bateria de exercícios, muitos deles retirados de vestibulares, para "treinarem" suas habilidades e competências para "responder" perguntas, e não para "fazer" perguntas. Trata-se de um condicionamento no estilo mais que clássico do behaviorismo em psicologia. O melhor aluno é aquele que consegue resolver a maior quantidade de problemas, seguindo as regras e padrões estabelecidos pelos professores nas aulas normais e nas aulas de "reforço".
Não se estimula o pensamento, a reflexão, a crítica e outras habilidades intelectuais necessárias à formação do jovem enquanto cidadão. Pelo contrário, passa-se uma visão para eles de que são a "elite intelectual" do ensino médio, porque têm condições de pagar a escola particular e, desta forma, poderão frequentar as melhores universidades públicas do país.
Esse modelo não somente está institucionalizado como também cria um verdadeiro apartheid educacional. Na medida em que os vestibulares são provas de conhecimentos gerais e pedem a memorização e a capacidade de resolução de problemas específicos nas mais variadas disciplinas, no final do processo, são esses alunos de classe média, principalmente, que pagam as escolas de ensino médio, que irão ter acesso às vagas escassas das universidades públicas nacionais.
De maneira geral, a estrutura "pedagógica" dessas escolas possui uma estrutura hierárquica extremamente rígida, formada pelo proprietário, um empresário capitalista que visa essencialmente o lucro e, subordinado a ele, um diretor, que é o responsável pelos procedimentos burocráticos e administrativos e pela intermediação com as diretorias regionais de ensino da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo que, por meio de seus supervisores de ensino, estão encarregadas de fiscalizar a lisura do processo educacional no ensino privado. Depois vem o coordenador pedagógico, que na verdade faz as vezes de um relações públicas, procurando tratar os alunos e seus pais ou responsáveis, sob a ótica do sistema capitalista, como clientes e, nesse caso, o cliente sempre tem razão. Os professores são contratados como horistas, ou seja, não possuem horas atividades para se dedicarem à preparação de aulas, estudos paralelos, reuniões pedagógicas etc. Na verdade, essas atividades são consideradas prescindíveis, pois o material apostilado pressiona o professor a uma ação em sala de aula programada de cima para baixo. Não há participação democrática desses docentes na escola. O sistema é extremamente autoritário. Uma prova disso é o sistema de contratação dos docentes. Geralmente o docente é contratado pelo proprietário da escola, a partir de indicações, sem a participação do colegiado da escola, e a negociação salarial, por exemplo, é realizada individualmente. Tanto é que se discute tudo na sala dos professores: futebol, filhos, culinária etc; menos o quanto cada um ganha. O princípio de isonomia salarial não é respeitado e as escolas privadas realizam uma pesquisa de "ibope", que não se trata de uma avaliação institucional, para "rankiar" os professores. Aqueles que são considerados "mais legais" pelos alunos têm a sua hora aula valorizada e, para isso, os critérios não é a competência, mas o "gingado" do professor no sentido de tornar sua aula mais "divertida", mais "interessante" em função da piadinha certa na hora certa. O conhecimento não é mais o objetivo, mas sim a satisfação do cliente.
Enfim, a escola privada de ensino médio promete o "melhor" ensino, mas na verdade vive da aparência na medida em que a sociedade de consumo privilegia a "marca", a "etiqueta" da mercadoria e, nesse sentido, tanto professor, como material didático e o próprio conhecimento são transformados em mercadorias que geram lucro para o empreendedor privado. O que se verifica é a ausência de um espaço reflexivo, de produção do conhecimento. A sala de aula é um local de reprodução de um conhecimento geralmente equivocado, impresso nas apostilas, que o professor tem que repetir sem fazer qualquer crítica à mesma, pois é na apostila, na venda dela, que o empresário do sistema de ensino e o dono da escola ganham a maior parte de seus lucros. É por isso que muitas escolas particulares oferecem bolsas de estudos para os alunos de classe média baixa, mas não deixam de cobrar o material apostilado. É a mina de ouro da educação privada! Livros??? Não é necessário mais... Ouvi há alguns anos atrás, da boca de uma pedagoga bastante prestigiada na região, que os livros estão fadados à extinção, pois agora a internet irá substituí-los definitivamente!!!
Agora irei tecer algumas reflexões sobre a educação pública relativa ao ensino médio.
A rede pública vinculada à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, no âmbito do ensino médio, sempre esteve relegada à segundo plano. Isso em uma perspectiva histórica. Até os anos 1970 haviam poucas escolas de ensino médio públicas no estado de São Paulo. As poucas que haviam atendiam um público que hoje está presente na escola privada. Então, na época, os docentes da rede pública recebiam salários dignos e atendiam a um público que não era formado na sua maioria por filhos de trabalhadores, mas era oriundo da classe média. O professor da escola pública até os anos 1970 tinha prestígio, principalmente nas cidades do interior. A partir dos anos de 1980 houve um avanço na "democratização" do ensino público no nível médio, antigo colegial. Construiram-se novas escolas e contrataram-se mais professores. Porém, o governo do estado estabeleceu uma política de arrocho salarial que afastou os melhores docentes da rede pública. Os poucos que ficaram, ficaram por idealismo ou por convicções políticas. A "democratização" do ensino médio público não significou uma melhoria na qualidade de ensino, pelo contrário, apenas aumentou o número de vagas para atender aos filhos da classe trabalhadora e, nesse sentido, o público majoritário é de jovens que estão já inseridos no mercado de trabalho recebendo baixos salários e que estudam à noite. Uma questão importante: como um jovem entre 14 e 17 anos, que trabalha o dia todo, de segunda à sábado, tem tempo ou condições físicas e psicológicas de estudar os conteúdos oferecidos no período noturno, das 19 as 23 horas, com qualidade? Na verdade, o que acontece de fato, é apenas a presença do aluno em sala de aula. Ele não tem tempo nem condições físicas e psicológicas de estudar o que assistiu em sala de aula em casa pois, mesmo que tenha o domingo livre, está tão cansado que troca o estudo pelo lazer.
Em relação ao material para estudar, a escola pública, diferente da escola privada, não oferecia livros didáticos e, desta forma, a maioria dos professores escrevia na lousa o conteúdo para ser copiado pelo aluno em um caderno, muitas vezes adquirido com dificuldade. Muitas vezes ocorria a prática do "ditado", em que o professor lê um texto e os alunos copiam. Como a aula tem 50 minutos, no final não há tempo para se refletir sobre o conteúdo "ditado". Isso foi assim durante os anos 1980 e 1990 e início do ano 2000.
Uma questão que deve ser citada é o fato de que, na escola pública, apesar das dificuldades, o professor possuia liberdade de cátedra e, desta forma, elaborava seu plano de ensino com liberdade, atentando para os aspectos da sua disciplina que considerava mais importante e relevante. Essa prática da liberdade de cátedra não existe na escola privada, que está sob a ditadura das apostilas dos sistemas de ensino empresariais...
Há aproximadamente 2 anos, o ensino público médio sofreu alterações que considero significativas. O governo federal passou a fornecer o livro didático, que é comprado com dinheiro público e fica a disposição do aluno, mas não é sua propriedade. É propriedade pública e, desta forma, quando o aluno terminar a 3a. série, deixará o livro didático para que outros alunos possam utilizá-los. Essa iniciativa foi muito importante, pois desta forma o aluno do ensino médio passa a ter um material teórico em que pode estudar e acompanhar as aulas. Um detalhe importante: cada escola faz um questionário com os professores para que eles indiquem o livro didático de sua preferência e os mesmos são adquiridos pelo governo federal através de um processo licitatório.
O governo do estado elaborou uma proposta curricular para cada disciplina. O sindicato dos professores (APEOESP) fez críticas a essa proposta. Não posso dizer nada à respeito das outras disciplinas mas, no tocante a disciplina de História e de Sociologia que leciono no ensino médio público posso garantir que a proposta é de qualidade, não somente em relação aos temas abordados, que estão diretamente associados às problemáticas contemporâneas como desigualdade social, preconceito, cidadania etc, mas também em relação à qualidade dos textos e autores citados, qualidade dos exercícios e propostas de trabalho e indicação bibliográfica.
Porém, o material oferecido pela Secretaria da Educação é mínimo diante das exigências do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) que servirá como "vestibular" para dezenas de universidades federais de todo o Brasil e para a classificação do aluno que pretende cursar uma universidade privada e ter acesso ao programa de bolsa de estudos do governo federal, denominado PROUNI.
Desta forma, minha experiência no ensino médio público atualmente é o de trabalhar com meus alunos o conteúdo previsto para todo ensino médio, utilizando a proposta curricular do governo do estado e também o livro didático oferecido pelo governo federal. Porém, a escola pública, ao garantir a liberdade de cátedra, permite que eu agregue novos textos, novas abordagens, faça a crítica tanto ao material didático oferecido pelo estado como pelo governo federal, não me submetendo a um sistema autoritário que possa existir. Pelo contrário, no espaço da sala de aula na escola em que leciono, e creio que essa realidade é disponível para todos os professores das escolas públicas do estado de São Paulo, tenho total liberdade de cátedra e posso realizar meu trabalho como um processo que não somente permite que eu me realize pessoal e profissionalmente, mas também que utilize minha prática docente como um instrumento de transformação de valores e idéias no sentido de contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática, com seres humanos mais conscientes de seus direitos e deveres e, principalmente, aptos para o exercício completo da cidadania.
Deixei de lado diversos outros aspectos que fazem parte do contexto do ensino médio paulista, inclusive questões de ordem salarial, carreira docente, oportunidades de formação continuada etc. Talvez venha abordar esses outros temas em uma nova oportunidade.