quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Educação e luta de classes...















Em recente conferência proferida na Unicamp, na Faculdade de Educação, na abertura oficial do grupo de estudos sobre Gramsci e a educação, Demerval Saviani falou longamente sobre o pensamento gramsciano na educação e a necessária manutenção da metodologia ortodoxa em relação ao marxismo. Autor de livros fundamentais como "Escola e democracia" e "História das idéias pedagógicas no Brasil", que ganhou o prêmio Jabuti em 2008, Saviani aposta na pedagogia histórico-crítica e na sala de aula um importante baluarte para a luta de classes. Não nega outros espaços sociais para a luta de classes como os sindicatos, os partidos políticos entre outros, mas é muito preciso em sua avaliação, a partir do olhar de Gramsci, a respeito do conceito de sociedade civil. Para o leitor que não sabe quem foi Antonio Gramsci faço a concessão de contextualizar esse importante intelectual italiano do início do século XX que morreu em uma prisão do regime fascista de Benito Mussolini. Foi autor de obras valorosas como "Concepção dialética da história", "Maquiavel, a política e o Estado moderno" e "Cadernos do cárcere". Gramsci foi um intelectual marxista que valorizava muito a leitura que Marx fez no século XIX sobre o modo de produção capitalista. Porém, Gramsci não era ingênuo com relação aos meios e às instituições que o capitalismo constrói historicamente para derrotar os movimentos populares. Nesse sentido, Gramsci entende que no modo de produção capitalista é possível a construção histórica de diversos modelos de formações sociais que, de maneira aparente, encobrem a lógica exploratória do sistema capitalista, que se manifesta na luta de classes. Com o conceito de "hegemonia" burguesa, o italiano percebe como que no plano da cultura a burguesia contamina a classe trabalhadora com seus valores e princípios morais e, desta forma, os trabalhadores introjetam o pensamento burguês sobre o mundo e reproduzem suas nefastas condições de vida e de trabalho sem a necessária conscientização política voltada para a transformação social. Saviani é ortodoxo porque não recusa a abordagem original de Marx e Engels, porque a considera fundamental para o entendimento da história. Porém, como grande leitor de Gramsci, reconhece as múltiplas faces do capitalismo nas modalidades de formações sociais que podem confundir não somente os movimentos populares, como também os próprios intelectuais, que passam a criar, segundo ele, de maneira insólita, teorias mistas e incompetentes de verificação da realidade histórica. No caso da educação, Saviani faz uma crítica severa à educação tradicional, escolanovista e tecnicista, mas também à abordagem crítico-reprodutivista. Irei explicar melhor o que ele entende por essas diferentes pedagogias. A educação tradicional é baseada na erudição e memorização de conteúdos referentes à classe dominante, formadora do "bacharelismo" que dominou a vida cultural brasileira durante todo o século XIX e boa parte do século XX. A escola tradicional pressupõe o professor como portador do conhecimento e o aluno (do latim "alumini", aquele que não possui luz própria) como um receptáculo vazio que precisa aprender o que o professor tem a ensinar a partir de uma metodologia autoritária. A pedagogia escolanovista, que no Brasil ganha força a partir do Manifesto de 1932, parte do princípio de que o professor deve deixar o aluno livre para a construção do conhecimento, tendo a liberdade e a autonomia como princípios fundamentais dentro da sala de aula e, ao mesmo tempo, reconhece a necessidade da existência de um conhecimento anterior, inerente ao aluno, para que o mesmo se empenhe naquilo que é denominado de educação pesquisadora. A pedagogia tecnicista pressupõe o ensino de habilidades e competências profissionais, o ensinar a fazer algo prático, sem a necessidade de conteúdos reflexivos, para que o aluno formado ingresse no mercado de trabalho. De maneira geral, a crítica de Saviani, com a qual eu concordo, é a seguinte. A pedagogia tradicional não permite ao aluno o acesso ao pensamento crítico mas, no entanto, como uma pedagogia conteudista, oferece ao aluno conhecimentos de origem burguesa ou não fundamentais para como instrumental para a reflexão crítica da história. Então, Saviani defende que a escola pública deve ser um espaço onde a criança e o jovem, no ensino fundamental e médio, devem receber a maior quantidade de conhecimento conteudista possível para que esse saber se torne um instrumento de inserção do trabalhador no universo cultural e educacional da burguesia pois, do contrário, o trabalhador sempre ficará marginalizado. Mas essa pedagogia deve se tornar histórico-crítica no sentido de sempre visualizar a necessária transformação da sociedade capitalista em uma sociedade igualitária e justa. A pedagogia escolanovista é conservadora, segundo Saviani, pois trabalha não a essência, mas a existência, no dizer do educador e, desta forma, funciona muito bem nas escolas que recebem crianças e jovens oriundos da burguesia, pois eles já tiveram contato com conteúdos culturais e educacionais que os possibilitam o ato de criação, autonomia e liberdade. Para as crianças e os jovens que vieram do proletariado tal pedagogia é um desastre, pois diante da precariedade da estrutura física, administrativa e pedagógica da escola pública, o resultado da aplicação do escolanovismo nesse espaço é o acirramento da indisciplina e da desmotivação. Para ele sem disciplina e motivação não há aprendizagem. Em relação a escola tecnicista, que pode ser observada pelo leitor a partir das atuais escolas profissionalizantes (FATEC, CEFET, INFET, SENAI entre outras) o objetivo passa pela razão meramente instrumental, com a formação de mão-de-obra qualificada para o mercado de trabalho capitalista que irá gerar uma quantidade de mais-valia maior que será apropriada pela burguesia, além de se constituir em uma "casta" profissional "transformista", conforme o próprio Gramsci aponta e Saviani reforça, ou seja, trabalhadores assalariados que não irão questionar os sistema capitalista e suas diversas formações sociais e irão se portar como "feitores" em relação aos trabalhadores assalariados subalternos em troca de um salário muito pouco diferenciado. A principal motivação da pedagogia tecnicista passa pela ideia de estratificação social de Max Weber, que leva em consideração não somente a riqueza (expressa em um salário maior), mas também o prestígio e o poder (em relação ao proletariado que continua sendo explorado). Portanto, Saviani reconhece que esses três modelos pedagógicos são reprodutores do sistema capitalista. O quarto modelo, denominado por ele de crítico-reprodutivista é inspirado, principalmente, em Althusser, intelectual marxista francês da década de 1960, que criou o conceito de aparelhos ideológicos do Estado. A escola, assim como a família, a igreja, o clube ou qualquer outra instituição social presente na sociedade capitalista, tem a função de reproduzir o modelo social burguês e manter o proletariado em estado de apatia, passividade e dominação. Desta forma, Althusser afirma que a escola vem desempenhando formidavelmente o seu papel, que é o de alienar o trabalhador. Saviani denomina essa pedagogia de crítica porque Althusser reconhece o papel de alienação do proletariado, mas afirma que é reprodutivista porque com seu pessimismo, não reconhece no interior da escola um espaço eficiente para a luta de classes. Enfim, Saviani entende que devemos apostar em uma escola histórico-crítica, com uma excelente base de conteúdo no ensino fundamental e médio (filosofia, sociologia, história, geografia, matemática, línguas, física, química, biologia, artes etc), para que o estudante originado do proletariado possa compartilhar do mesmo conhecimento que a burguesia possui e, ao mesmo tempo, essa escola demanda um docente e uma estrutura escolar que aposte em uma prática cotidiana de conscientização do proletariado para uma transformação da sociedade capitalista. É nesse momento que discordo de Saviani, essencialmente, pois considero que o sistema capitalista possui a capacidade de mutação histórica, criando novas formações sociais, impossibilitando a sua transformação. Quero dizer com isso que o máximo que poderemos obter por meio da pedagogia histórico-crítica é a conscientização do proletariado de que ele é explorado no sistema capitalista e, ao mesmo tempo, a consciência também de que esse sistema possui barreiras intransponíveis que impedem a sua transformação. Como exemplo, cito a fala de Saviani sobre o atual presidente da República. Ele considera o presidente Lula um "transformista", assim como a maioria dos militantes do Partido dos Trabalhadores. Porém, Saviani não leva em consideração que qualquer ação revolucionária por parte do presidente ou dos militantes do PT significa uma repressão violenta por parte da burguesia por meio dos aparelhos ideológicos do Estado. Quero dizer que se o presidente Lula, quando eleito pela primeira vez em 2002, não tomaria posse em 2003, se mantivesse seu discurso político e ideológico como era em 1989. Creio até que fosse assassinado ou simplesmente ocorresse um golpe político dado por civis e/ou militares como ocorreu em 1964. Então, o espaço público para a realização de reformas sociais em benefício dos trabalhadores demanda um enorme esforço de negociação com os representantes da burguesia no Congresso Nacional, nos estados federativos e até mesmo nos municípios, além de alianças desagradáveis com partidos políticos desqualificados, mas que são importantes no processo "democrático-burguês" de votação de projetos de lei no Congresso Nacional, isso para não falar na relação complexa com os meios de comunicação de massa, controlados por burgueses com interesses econômicos e ideológicos muito bem explícitos. Enfim, creio que a sala de aula seja um espaço importante para a luta de classes e que o professor deve se preocupar com uma educação de qualidade, que leve em consideração conteúdos científicos e críticos. Porém, o que redundará daí é um coletivo de trabalhadores conscientes de sua situação no sistema capitalista, que poderão votar em candidatos que representem os movimentos populares, mas sabendo que a revolução não está no horizonte nem mesmo distante, porque a burguesia possui mecanismos de obstaculizar radicalismos que coloquem os seus interesses em perigo. O que os trabalhadores poderão fazer, se tal pedagogia efetivamente for implantada em todas as escolas públicas brasileiras, e isso é uma utopia, diga-se de passagem, é reduzir o índice de exploração que sofrem e obter, por meio de suas lutas sociais dentro e fora da sala de aula, benefícios que melhorem um pouco suas condições de vida mas que de maneira nenhuma mudarão o sistema capitalista e a desigualdade social existente em nosso país. Então, recorro novamente ao Sponville e ao seu conceito de "felicidade possível"...
Dedico esse texto a minha grande amiga Sônia Siquelli (beijos para vc...).