O que será que me dá/Que me bole por dentro, será que me dá/Que brota à flor da pele, será que me dá/E que me sobe às faces e me faz corar/E que me salta aos olhos a me atraiçoar/E que me aperta o peito e me faz confessar/O que não tem mais jeito de dissimular/E que nem é direito ninguém recusar/E que me faz mendigo, me faz suplicar/O que não tem medida, nem nunca terá/O que não tem remédio, nem nunca terá/O que não tem receita.
O que será que será/Que dá dentro da gente e que não devia/Que desacata a gente, que é revelia/Que é feito uma aguardente que não sacia/Que é feito estar doente de uma folia/Que nem dez mandamentos vão conciliar/Nem todos os unguentos vão aliviar/Nem todos os quebrantos, toda alquimia/Que nem todos os santos, será que será/O que não tem descanso, nem nunca terá/O que não tem cansaço, nem nunca terá/O que não tem limite.
O que será que me dá/Que me queima por dentro, será que me dá/Que me perturba o sono, será que me dá/Que todos os tremores me vêm agitar/Que todos os ardores me vêm atiçar/Que todos os suores me vêm encharcar/ Que todos os meus nervos estão a rogar/Que todos os meus órgãos estão a clamar/O que não tem vergonha, nem nunca terá/O que não tem governo, nem nunca terá/O que não tem juízo (Chico Buarque - 1976).
Epicuro: somente há átomos e o vazio. Os átomos, o sumo do materialismo, se unem e se desunem de acordo com a natureza, que nada diz sobre isso. O vazio é o nada. O que dizer sobre coisas que não são conscientes? A natureza é amoral. Ninguém é bom ou mal. Ninguém faz escolhas certas ou erradas, apenas segue a sua natureza. Mas o "eu" é um aglomerado de átomos e vazio, o que mais esperar dele? Diante de tamanha naturalidade do ser e do fazer, nada além de misericórdia e tolerância. O que chamo a mim mesmo é apenas um substantivo sobre algo que não é em si. O "eu" é a somatória dos átomos e do vazio, agregados. O que faço não possui responsabilidade própria, apenas adjetivada. O Direito impõe penas à adjetivação do sujeito que não é. Mas se faz necessário na medida em que se produzem ilusões sobre o social, o ético, o corpo, a morte, que dão significado à existência. Mas a existência em si é mera adjetivação dada por cada uma das subjetividades, produtos dos átomos e do vazio. Em si, a natureza revela o sonho como "realidade". O instante é a realidade. A verdade é a História. Aos historiadores é facultado o poder de julgar os fatos ou então de narrá-los, mas nunca se julga os fatos em si e muito menos se narra o que aconteceu. Julga-se o aparente e narra-se o fenômeno. O nômeno, no dizer kantiano, nada nos diz, não porque não queira, mas porque não temos os instrumentos necessários para atingí-lo. Resta-nos a sabedoria. Sponville aponta para o desespero e a beatitude. O desespero é o não comprometimento com o futuro. A beatitude é a aceitação do passado. Viver é existir no instante presente! Então o que será que me dá? O que será que dá na gente? Sem descanso, sem pacificação, sem amenização e sem limite... Um "daimon", um demônio, uma chama, um desejo, que não sabemos de onde vêm, que nos intimida, nos acovarda e também nos encoraja, nos faz agir e nos faz pensar, um "eros" que nos faz amar...