Ontem terminou o ciclo de filmes no Cineclube Beloca com o tema "Felicidade desesperadamente" do qual fui o curador. Na verdade, a escolha dos filmes ficou sob o encargo dos principais organizadores do Cineclube, a Alice e o Fritz, a quem eu quero agradecer de coração o convite e a oportunidade para apresentar meu trabalho. Foram quatro filmes apresentados. O primeiro, "Tartarugas podem voar" é um filme iraniano de meados dessa década, após a invasão norte-americana no Iraque. Trate de um grupo de jovens refugiados curdos que viviam em tendas com muitas dificuldades. Há um contrate interessante no filme entre as principais personagens. Os jovens que, apesar das dificuldades e do sofrimento, procuravam por meio da solidariedade a alegria da vida, mesmo perdendo os dois braços com a explosão de uma mina terrestre, pois ganhavam a vida desarmando minas militares e vendendo-as para comerciantes locais e, de outro lado, a menina que foi estuprada por militares iraquianos e que teve a sua família morta e, como resultado, teve uma criança que nasceu cega. Os horizontes da felicidade se apresentam para todos, mas para alguns o horizonte está mais distante, enquanto para outros mais próximo. Porém, muitos dos que vislumbram o horizonte mais distante não abdicam da possibilidade da felicidade, mesmo em situações as mais bizarras possíveis, enquanto outros, que estão muito próximos desse horizonte, não conseguem visualizá-lo e vivem na infelicidade. No caso da menina, devido às suas condições subjetivas e objetivas, o horizonte da felicidade se encontrava muito, mas muito distante e acabou fazendo a opção mais do que já explicitada por Albert Camus, pelo suicídio e o assassinato de seu filho ainda criança. Porém, os demais, não abdicaram da possibilidade de felicidade e a afirmavam diversas vezes, mesmo sob as mais severas condições de vida. O segundo filme, "Ensina-me a viver", do início dos anos 70, trata da história de um jovem de classe alta que tem um comportamento mórbido. Talvez por tédio, talvez por tentar encontrar sua individualidade, mas nunca para tentar a busca da felicidade. Simula suicídios diante da mãe, que já conformada com o comportamento do filho torna-se indiferente. Como gosta de frequentar velórios e enterros, encontra uma idosa que daí a poucos dias irá completar 80 anos de idade. O filme é carregado nas tintas da contra-cultura do final dos anos 60 e, desta forma, a idosa, Maube, tem um comportamento de liberdade, pela liberdade e para a liberdade que, aos olhos do presente, mais parece insensatez. Ela furta automóveis e trafega pelas ruas das cidades e pelas estradas em alta velocidade, ludibriando os policiais. Tem dentro de casa, que é um vagão de trem abandonado, uma diversidade de objetos que coleciona, como o banjo que deu de presente a Harold, o rapaz do filme, até uma vagina feita de madeira e desproporcional, que convida Harold para tocá-la e senti-la, assim como um aparelho de respiração que simula o cheiro da neve. Sua estravagância contagia o rapaz que acaba se apaixonando por ela. Elas dormem juntos e ele a pede em casamento. Porém ela já tinha previsto que no dia em que completasse 80 anos ela se suicidaria. Dito e feito, para a tristeza de Harold que, nem por isso, abdica do ideal de liberdade e autonomia proposto pela contra-cultura. Abandona seu comportamento mórbido e termina o filme caminhando sob um campo gramado, tocando umas notas musicais no seu banjo. Convém ressaltar que em uma determinada passagem do filme a câmera mostra o braço da idosa Maube com números tatuados, o que indica que era judia e que teria sido uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas. O terceiro filme é de Orson Wells, "Cidadão Kane", que conta a história de um garoto pobre que transfere por meio da ganância a sua busca pela felicidade. Ele se torna um importante homem público dos meios de comunicação norte-americanos, com poder, prestígio e muito dinheiro. Estabele relações superficiais com as pessoas, as manipula em um jogo de "verdades e mentiras" em seus jornais, mas acaba morrendo infeliz. No momento de sua morte pronuncia a palavra "rosebud". Essa palavra misteriosa, propositalmente colocada na boca da personagem por Wells, remete a infância de Kane, e a sua busca incessante durante toda a vida para recuperar suas sensações felizes durante sua infância pobre, quando possuía um par de esquis a que dera o nome de "rosebud". Buscou por toda a vida a felicidade no exterior e no final reconheceu que ela estava dentro dele, nas suas recordações de infância, que nenhum poder, prestígio ou dinheiro poderia resgatar. O quarto e último filme, apresentado ontem, "As duas faces da felicidade" é francês, do início dos anos 60. É um filme sartriano, existencialista, que trata da noção do amor necessário e do amor contingente. Uma família bem estruturada e feliz. O marido é marceneiro e a esposa costureira. Duas crianças lindas e calmas. Uma casa simples, mas bem estruturada. Boa vizinhança, bons amigos, boa família etc. Porém, em um trabalho fora da cidade, ele se apaixona por uma funcionária dos correios e passa a se relacionar sexualmente e afetivamente com ela. Ele afirma que está acumulando felicidade, que é capaz de amar mais ainda a sua jovem esposa, da qual não tem intenção de se separar. Em um dia ensolarado, em um parque, muito sinceramente relata para a esposa sua experiência e afirma que está mais feliz do que antes. Ela se suicida. Ele se entristece com a morte da mulher, mas poucos meses depois passa a viver com a amante, que assume a responsabilidade por seus filhos, sem remorso ou culpa. Fim da estória: a imoralidade está em Therese, a esposa que não aceita o amor contingencial e com o suicídio renuncia à felicidade. Bem sartriano...
Enfim, para um pequeno público que achei interessado, fiz a seguinte reflexão. Disse que arte e filosofia estão intimamente ligadas. O cinema, como forma de expressão artística, não deve ser visto como uma reprodução da história, mas como uma leitura de todos os que participam de sua elaboração, especialmente o diretor, da realidade, um ponto de vista sobre a verdade e, desta forma, é possível, por meio do filme, contextualizar um viés do contexto cultural da época em que foi rodado o filme. E é nesse momento que é possível estabelecer uma relação com a filosofia. Comecei citando superfialmente, como farei aqui, pois lá o tempo era exíguo e, aqui, o espaço, Schopenhauer que escreveu que viver é estar entre dois polos, a dor e o tédio. A vontade metafísica pensada por Schopenhauer faz com que o ser humano deseje sempre algo que não está tão facilmente ao seu alcance e, durante o desejo, sofra a dor. Quando atinge seu objetivo e passa a possuir o objeto desejado, vivencia o tédio e quase que imediatamente a vontade se manifesta novamente por meio de um novo desejo. Para estancar essa sensação de infelicidade Schopenhauer, talvez influenciado pelo budismo, defende o desapego. Em seguida cito Nietzsche e sua noção de que todos nós estamos caindo em um abismo. A única opção de escolha diante dessa fatalidade é despencar se lamentando ou então dançando. A morte é uma realidade que mais cedo ou mais tarde atingirá todos os seres humanos e, desta forma, é inevitável. Então só nos restaria a opção pela vida, mas pela vida presente, vivendo-a como se fosse uma eternidade e, ao mesmo tempo, fortalecermos nosso corpo e nosso espírito por meio do exercício do "amor fati" incondicional. A vida presente é a única vida possível para nós. Eis a possibilidade do além do homem. Cultivar uma moral dos senhores é fundamental pois, por meio dela, desenvolveremos a coragem, a bravura, a força e a capacidade de andar pelo mundo com a cabeça erguida, mesmo que diante das mais terríveis intempéries. Passo em seguida para Kafka e seu conto "A metamorfose". Gregor trabalha para sustentar sua família. Seu pai endividado o obriga a se empregar para o homem para quem ele deve. Mas o próprio pai não trabalha. Sua irmã quer aprender a tocar violino e precisa de dinheiro para pagar as aulas. Então Gregor trabalha para sua irmã ser feliz. E ele, quase que intantaneamente, se transforma em uma barata. Ele foi transformado em uma barata pela opressão familiar? Se quisesse poderia ter dito "não". Negar a "ética do dever", que nos remete ao imperativo categórico kantiano e abraçar a "ética do querer" é a única possibilidade para não nos deixarmos transformar em baratas. Procuro estabelecer relações entre os autores que, além do mais, são todos materialistas. Em seguida cito Sartre e digo que somos todos condenados à liberdade, mesmo na omissão, pois as escolhas são de nossa inteira responsabilidade e não há nada dentro ou fora de nós, como um mandamento divino ou uma lei moral, que legitime nossas escolhas. Isso nos angustia, quando temos consciência dessa realidade, mas ao mesmo tempo nos permite a liberdade. É claro que o pensamento ético sartriano não termina aqui e, digo mais, mal começa aqui, mas se faz necessário uma abordagem sumária que, nesse caso, serve para instigar o leitor. Depois cito Camus e "O mito de Sísifo". A vida é absurda e, para vivê-la, temos que ser heróis absurdos. Não se deve negar a vida, mas afirmá-la incessantemente. Talvez exista alguém que mal conhecemos que está disposto a nos ajudar a empurrar a pedra de Sísifo até o alto da montanha. Termino com Sponville que afirma que só temos o presente. Em relação ao passado, gratidão e misericórdia e, em relação ao futuro, desespero, ausência de esperança, não viver no futuro, porque senão nós não seremos capazes de usufruir o presente. A única felicidade que podemos ter é a felicidade possível, em função de nossas condições momentâneas subjetivas e objetivas. Enfim, não desejar demasiadamente o que não temos, mas desejar muito, mas muito mesmo o que temos...