quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sobre a tortura, a anistia e a banalidade do mal














Faz trinta anos que o regime militar, instalado no Brasil em 1964, aprovou a lei da anistia, que concedia a libertação e o perdão aos militantes políticos que lutaram contra a repressão, mas também permitiu que os agentes estatais, policiais e militares especialmente, não sofressem qualquer tipo de julgamento e punição por terem torturado milhares de pessoas nos porões sombrios de organizações como o DOI-CODI e o DOPS.
Em 2004 o PNUD publicou um documento, resultado de uma extensa pesquisa, sobre a democracia na América Latina. Um dado que me surpreendeu foi que mais de 60% dos latino-americanos abririam mão do Estado Democrático de Direito e aceitariam um regime ditadorial se este oferecesse emprego e renda.
Posso até pensar que parte do raciocínio esteja relacionada com a situação de miséria e desigualdade social que reina na América Latina. Porém, não posso concordar com essa posição por dois motivos: a democracia possui mecanismos institucionais, políticos e legais que permitem o avanço no processo de distribuição de renda e um regime ditatorial contraria todos os princípios dos direitos humanos.
Acredito mais naquilo que Brecht denominou de "analfabetismo político". A memória histórica latino-americana e, em especial, a brasileira, está em frangalhos. Os jovens não têm a mínima noção do que aconteceu nesse país durante o regime militar. A escola não consegue informar e sensibilizar minimamente os estudantes sobre o tema. O Estado, em seus diversos níveis, não promove a construção de memoriais com a finalidade de gravar com a arquitetura e a arte a violência selvagem que assolou o país durante aqueles anos da ditadura militar. Milhares de famílias foram desestruturadas e ficaram desamparadas quando um de seus membros foi torturado e morto pelas forças da repressão.
Em 1979 veio a lei da anistia. Havia uma pressão da sociedade civil e também internacional para que ela fosse aprovada. Porém, uma questão estava em jogo. Fundamentalmente o que iria acontecer quando o país voltasse à normalidade democrática com aqueles que, na função de servidores públicos, utilizaram meios medievais para a realização do inquérito de prisioneiros políticos? Provavelmente seriam presos, julgados e condenados pelo crime de tortura, para não dizer o de homicídio qualificado, em tribunais democráticos.
Então era mais inteligente anistiar todos, presos políticos, exilados, torturadores etc. Para ser mais preciso, a lei da anistia ainda sofreu algumas reformas, porque alguns presos, especialmente aqueles que cometeram homicídios, sequestros e assaltos continuaram presos por mais algum tempo.
Da noite para o dia, aquele homem ou mulher que, impunemente e sem qualquer restrição legal ou administrativa, colocavam um jovem nu sentado em uma cadeira e lhe davam choques elétricos, ou então uma jovem, nua, deitada em uma cama e a estupravam barbaramente, passariam a ser considerados pela Justiça e pela lei cidadãos normais, acima de qualquer suspeita.
Veio a redemocratização em 1985, com a eleição de Tancredo Neves, a Constituinte em 1986, a própria Constituição em 1988. Tivemos novamente eleições diretas em 1989. Em 1994, um intelectual que foi cassado e perseguido durante a ditadura militar, o Fernando Henrique Cardoso, foi eleito presidente e, agora, um ex-metalúrgico, que foi militante sindical durante o período de repressão e diversas vezes presos, é o presidente da República. Porém, o que foi feito de significativo a respeito dos torturadores?
Muitos documentos foram levados nos anos 80 para a guarda da polícia federal, chefiada na época pelo Romeu Tuma. Quando voltaram aos estados tinham sido saqueados, sendo que uma parte significativa das informações sobre os torturadores desapareceram e não estão disponíveis aos pesquisadores.
Os parentes das vítimas de homicídio e as vítimas sobreviventes passaram a ter o direito de exigir do Estado brasileiro o reconhecimento da prática de tortura e, desta forma, o direito de uma indenização financeira. Essa indenização não apaga o passado e muito menos o sofrimento dessas pessoas. Mas é uma forma do Estado minimizar o dano causado a elas. Porém, mesmo assim, o critério para avaliar o valor a ser indenizado é desigual e, a maioria, recebe uma quantia irrisória em relação ao que sofreu no passado.
Mas a questão que quero abordar mais especificamente é a figura humana do torturador.
Hannah Arendt escreveu um livro intitulado "Eichmann em Jerusalém". Eichmann era um oficial da SS nazista durante a guerra e o responsável pela logística em um campo de concentração para encaminha milhares de prisioneiros judeus para a câmara de gás.
Terminada a guerra, ele fugiu da Alemanha e se escondeu na Argentina. Em 1960 o serviço secreto israelense o encontrou e o levou para Jerusalém, onde foi julgado e condenado à morte.
Diante da pergunta do juíz se ele se considerava culpado ou inocente, não teve dúvida em responder que era inocente.
O juíz ficou pasmo e perguntou por qual motivo. Ele respondeu que era um oficial da SS recebendo ordens superiores. Servia ao Estado nazista alemão que possuia leis que o autorizavam a fazer o que vinha fazendo. No caso de desobedecer às ordens poderia ser punido severamente. Era, portanto, um burocrata a serviço do genocídio.
Hannah Arendt chamou a esse tipo de mentalidade de "banalidade do mal". A tecnocracia da morte e do terror passou a imperar no mundo da modernidade científica e tecnológica.
A questão que faço é a seguinte: onde reside o humano dentro desse burocrata do mal?
Não há o humano no sentido gnóstico. O que há é uma engrenagem da qual ninguém pode escapar porque não possui o menor senso de reflexão crítica e valores da dignidade humana. Associa-se essa alienação ao prazer macabro e sádico de ter um poder desse tipo nas mãos e temos uma das maiores tragédias da história.
E no Brasil, durante a ditadura militar, ocorreu a "banalidade do mal"?
A legislação brasileira nunca permitiu a tortura. O Brasil, desde o começo do século XX é signatário de diversos tratados e convenções internacionais que considera a tortura como um crime contra a humanidade. O documento mais importante assinado pelos representantes do governo brasileiro é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pelas Nações Unidas em 1948.
Desta forma, os torturados dos porões da ditadura militar não estavam seguindo a lei quando torturavam os presos políticos. Seus superiores não ordenavam expressamente a prática de tal ação violenta e covarde. Mas faziam assim mesmo. E depois, no final do expediente, voltavam para seus lares, suas famílias, brincavam com seus filhos, assistiam a uma novela na televisão e iam dormir em paz.
Então porque torturavam pessoas indefesas?
Essa é a questão que está por detrás de tudo o que eu escrevi até agora e que me intriga.
Do ponto de vista histórico, a polícia e as forças armadas no Brasil, sempre gozaram de impunidade e de um poder monstruoso contra a sociedade. Era de se esperar que, em face da negligência das autoridades superiores, os torturadores utilizaram os meios que podiam tendo a certeza de que não sofreriam qualquer tipo de censura. Aliás, mesmo após a redemocratização e ainda hoje, a tortura é um dos meios mais utilizados pelos policiais para investigações criminais, especialmente em relação à população pobre que não possui meios de se defender judicialmente dessa prática.
Do ponto de vista filosófico, creio que precisamos nos reportar à condição moral do ser humano. O homem é um ser racional e moral, porque possui a consciência. Esta dá a ele a liberdade no agir. Porém a liberdade acarreta a responsabilidade e, nesse ponto, ninguém era, foi ou será realmente responsabilizado. Pode-se pensar em algum tipo de remorso ou de arrependimento por parte dos torturadores que ainda estão vivos e andam livremente pelas calçadas de nossas cidades?
De uma perspectiva psicanalítica, creio que no controle da situação e de posse de um poder contra o qual a vítima não podia se defender, a sensação orgásmica que a prática da tortura permitia aos seus protagonistas sentir é motivo suficiente para entendermos sua forma desumana e cruel de tratamento aos presos políticos.
Enfim, quem é o torturador?
É todo aquele agente público que utiliza de métodos violentos físicos e morais para obter informações, relevantes ou não, dos presos políticos na prática do inquérito policial.
Mas também somos todos nós que na época sabíamos que isso ocorria no subterrâneo da sociedade brasileira e não fizemos nada e todos os que hoje sabem desse fato e se omitem por conta do individualismo proporcionado pela sociedade consumista e, finalmente, aqueles que não sabem o que ocorreu e que, diante da possibildade de saber do acontecimento, negam-se a isso em nome de seus interesses pessoais vinculados ao que poderiam chamar de um "novo" momento da história brasileira onde isso não ocorre mais.
O que fazer, portanto, com os trinta anos da anistia?
Lembrar os que se esqueceram, punir os que praticaram a tortura e ensinar os mais jovens o valor fundamental de se viver em uma sociedade democrática, mesmo tendo ainda tanto o que se fazer e sendo ela algo ainda muito limitado. Mas é o que temos e não podemos abrir mão disso. Que a justiça se faça e que a memória brasileira mantenha-se viva sobre essa mancha em nossa história para que fatos como esse não ocorram nunca mais.