sábado, 14 de novembro de 2009

A partida


Um dia, um pai deu a seu pequeno filho uma pedra grande, áspera e porosa. O filho retribuiu o presente do pai dando a ele uma pedra pequena, branca e lisa. Estavam os dois à beira de um rio. O pai disse ao filho que em tempos ancestrais, quando ainda não se usavam as palavras, as pessoas trocavam entre si pedras carta. A pedra lisa significava um coração sereno e pacífico. Já a pedra áspera era a representação de um coração atormentado, de alguém que sofria muito. Alguns dias depois o pai foi embora, deixando o filho com a mãe, ainda pequeno. Nunca mais se viram. O filho cresceu. Tornou-se um violonista. Tocava em uma orquestra. Mas a orquestra foi desfeita e ele teve que retornar com sua nova esposa para a casa materna, no interior. A sua mãe já tinha falecido. Desempregado, iniciou um trabalho como preparador de corpos mortos. Aprendeu o que muitos de nós não entendemos. A naturalidade da morte e a dignidade daqueles que aqui viveram e que tiveram, como todos nós teremos um dia, que partir. Certo dia sua esposa recebe um telegrama. Dizia que seu pai tinha morrido. O filho relutou. Guardava uma grande mágoa pelo fato do pai tê-lo abandonado. Mesmo assim, acabou cedendo e foi ver o pai morto. Em princípio não o reconheceu. Já tinham se passado mais de trinta anos. Chegaram os homens da funerária. Queriam logo colocar o corpo do velho homem no caixão. De repente, o filho os afastou do corpo de seu pai e iniciou o seu trabalho de preparação. Fez a barba daquele velho homem. Quando foi afastar os dedos das mãos para posicioná-las corretamente para o cortejo fúnebre, percebeu que por entre os dedos caiu a pedra lisa que o filho tinha dado a ele há tantos anos. Nesse momento ele olhou detidamente para o rosto de seu pai e o reconheceu. Chorou lágrimas de tristeza pelos anos que não tiveram juntos, mas de alegria pelo reencontro. Enfim seu coração foi pacificado. Sua esposa deu a ele a antiga pedra e ele a devolveu à sua mulher que agora carrega em seu ventre o filho que irá nascer.
Para nós ocidentais a morte já teve os seus momentos de dignificação. A morte era um ritual cultuado. A memória dos mortos trazia em si a lembrança e o sentimento de pertencimento a uma família que possui uma história sempre significativa. Também se tinha um sentimento de magia em relação ao sobrenatural. Uma crença no divino e na certeza de que os mortos zelariam pelos vivos. Hoje a morte se tornou uma técnica médica. Os hospitais, com seus modernos aparelhos, procuram ignorar aquilo que é a única certeza de que temos na vida. Queremos todos viver eternamente. Queremos todos sermos jovens e alegres. Não há tolerância para a tristeza e nem para os pensamentos e os sentimentos. A morte tornou-se um incômodo para todos. Descartamos os mortos, assim como descartamos os velhos, como se descarta uma mercadoria que já não nos é mais útil. Porém, a partida está potencialmente presente dentro de todos nós e não podemos controlar seu inevitável momento. A lembrança do filho em relação ao pai resgatou não somente a família e o culto aos ancestrais, mas principalmente o amor retido por tantos anos dentro do seu coração e também no coração daquele homem tumultuado que teve as suas razões para a separação. Muitos de nós estamos separados fisicamente daqueles que amamos tanto, por motivo de distância, de trabalho, de falta de tempo entre outros. Mas guardamos dentro de nossos corações as pedrinhas que todos nos daram um dia, deixando conosco o sentimento da presença na lembrança como um sinal de que devemos dizer um sim à vida reconhecendo que a morte nos aguarda e, ao mesmo tempo, abre a porta para que novas vidas ocupem o nosso lugar...

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Liberdade, responsabilidade e angústia














Que belo acaso é o ser humano. Em um planeta tão pequeno em comparação às grandes constelações do universo, surgimos e passamos a viver em companhia de tantos outros seres vivos. Compartilhamos com eles uma mesma natureza. Temos nossas determinações, essencialmente orgânicas. Mas nesses milhares de anos em que nos fazemos presentes, criamos a cultura. A cultura é a nossa segunda natureza. Desenvolvemos a linguagem e passamos a nos comunicar, compartilhando os mesmos signos, sinais e símbolos. Porém estamos sós. Não somente sós porque não compartilhamos a linguagem com os outros seres vivos, mas sós enquanto indivíduos. Vivemos em sociedade sim. Posso até ceder ao grande Aristóteles a idéia do "zoon policon". Tudo bem, o homem é um ser social. Mas temos a nossa subjetividade. E ela é praticamente inacessível, inclusive para nós mesmos. Não sabemos, individualmente, quem somos. Vivemos uma liberdade que nos permite escolher as ações. Porém essa liberdade tem um limite, estabelecido pelo contexto histórico e social e também pelo sentido que atribuímos ao mundo e às outras pessoas. Minhas escolhas são resultado do sentido que eu atribuo às coisas. Minha consciência é limitada e, segundo Sartre, minha existência precede a minha essência. Não nascemos prontos e acabados. Nascemos animais e, por meio do processo de socialização passamos a aprender maneiras de pensar, agir e sentir. Mas somos indivíduos e, mesmo que compartilhemos a mesma cultura, filtramos em nossa consciência seus pressupostos e fazemos escolhas. O que será que legitima minhas escolhas? Se eu fosse cristão, no sentido histórico e tradicional, diria que são os mandamentos divinos. Há uma facilidade nisso, pois "a priori" Deus teria revelado para nós a forma correta de agirmos no mundo. Mas e se não existe Deus? A aposta pascalina não vale nesse caso. Blaise Pascal disse que é preferível acreditar em Deus porque se ele não existir não fará diferença alguma, mas se ele existir estaremos salvos! Um argumento ateu, ou quem sabe até agnóstico, me permitiria, como queria Sartre, reconhecer que não há nada exterior a mim mesmo que valide as minhas escolhas. Portanto, nunca saberei se estou realizando a escolha certa ou melhor. Acontece que sempre procuramos escolher o melhor. E essa escolha tem a ver com a idade em que me encontro. Aos dezessete anos escolhi ser professor. Naquele momento era o melhor para mim. Hoje, passados tantos anos, ainda reconheço que foi o melhor. Saboreio os frutos de minha profissão, especialmente o contato maravilhoso que tenho com meus alunos que, pacientemente, ouvem-me dissertar sobre tantos assuntos diversos em minhas aulas. Mas também fiz que hoje me arrependo. Mas é bobagem o arrependimento, porque aos vinte anos eu era uma outra pessoa e, dessa forma, só poderia considerar o melhor aquilo que escolhi na época. E hoje? Também sou alguém que faz escolhas, e pretendo sempre fazer as melhores, mas pode ser que daqui a vinte anos eu reconheça que não foram as melhores. E daí? Simplesmente gratidão em relação ao passado. Mas sou capaz de olhar os olhos daqueles que me circundam, que me amam ou me odeiam, e os piores, os indiferentes. O olhar deles é que irá dizer-me se foi o melhor que eu escolhi. Sartre disse que o inferno são os outros, porque eles sempre colocam obstáculos em nossas escolhas, mas dependemos deles para percebermos se elas foram as melhores possível. Os outros são o meu espelho! Posso amá-los? Claro que sim. Mas amar não significa que os afagarei com carinhos, mas que os deixarei fazerem as suas próprias escolhas, respeitando a subjetividade de cada um. E assim vamos, como o pássaro plainando no céu, solitários, buscando um refúgio para o descanso ou a imensidão para bater as asas. E o que isso tem a ver com a responsabilidade? Toda escolha que faço resulta em uma ação ou uma inação. Isso impactua toda a humanidade e, em função disso, sou responsável. Procurarei sempre fazer escolhas que minimizem o sofrimento alheio e maximizem a felicidade do próximo, por mais distante que esteja. A minha única angústia é não saber se a escolha foi realmente a melhor. Porém, ainda tenho o olhar alheio para mirar. Espero que os olhares sejam sempre brilhantes de alegria na afirmação da vida.

sábado, 7 de novembro de 2009

O eterno retorno




Neste segundo semestre de 2009 procurei fazer uma leitura de alguns filósofos ateus que me possibilitassem uma reabilitação do cristianismo. Pode parecer paradoxal, mas o fato é que me empenhei nesse processo. Com Schopenhauer descobri que a vida é dor e sofrimento e também o tédio. A solução dele é o isolamento, o ascetismo, um ser antisocial, e isso não me interessa de forma alguma. Eu acho que ele tem razão quando diz que a maioria dos seres humanos são néscios, medíocres e, por não terem idéias para dialogar, no sentido socrático, jogam e trocam cartas. Porém, eu não concebo a minha vida como isolamento. Gosto das pessoas. Tenho minhas manias. Atiro garrafas no palco quando vou ouvir rock e os músicos da banda resolvem "azarar" umas meninas idiotas e mandam um "breganejo". Mas, na maioria das vezes sou bastante tolerante. Não me afino com a negação do mundo. Na verdade, eu quero o mundo. Eu quero as pessoas. Gosto do Sartre quando diz que, apesar do inferno serem os outros, são exatamente os outros que me propiciam a possibilidade de captar, mesmo que por uns meros instantes, minha essência. Lembrem-se de que, para ele, a existência precede a essência. Então, Schopenhauer me foi útil para confirmar que a vida é dor e tédio. Mas aí eu parto para o Nietzsche e descubro, preliminarmente, que somos uma jóia preciosa nos confins do universo. Fruto do acaso, somos seres pensantes que buscam construir um sentido para si mesmos, mesmo que esse sentido careça de qualquer legitimidade. Nietzsche diz, categoricamente, torna-te quem tu és! E me proponho a isso mesmo. Em "A gaia ciência", esse elegante e, ao mesmo tempo, desajustado alemão, afirma que devemos amar, incondicionalmente, a vida, em tudo aquilo que ela nos oferece, tanto coisas boas como más. É o "amor fati". Com a idéia do "eterno retorno", ele me mostra que viver o presente, sem se preocupar com o passado e com o futuro, é a única razão para se viver. Viver o presente como se ele fosse eterno e retornasse pela eternidade para nós mesmos. Uma afirmação dionisíaca da vida, com um toque de equilíbrio e harmonia, portanto beleza, do deus Apolo. Nietzsche me inspira a aceitar a mim mesmo e a todos os demais seres humanos. Cristo, segundo os evangelhos, afirmou certa vez que devemos amar o próximo como a nós mesmos. Eu entendo que essa afirmação quer significar que se eu não me amar intensamente primeiro, não poderei amar qualquer outra pessoa e que, amar a si mesmo, é permitir-se uma ética do querer, sem correr o risco de uma prática que não leve em consideração a moralidade, apesar dele entender a moralidade como a ética "cristã" do século XIX luterano alemão. Para mim, Nietzsche apregoa uma moralidade de afirmação da vida e não de negação. Se não fosse assim, porque Zaratustra teria descido a montanha para falar aos ressentidos. A moral dos escravos não os impede de almejarem e alcançarem a moral dos senhores, enquanto glória, honra, coragem e destemor. Cristo, diante dos vendilhões do templo, chutou literalmente as pessoas. O sentido do oferece a outra face deve ser repensado, porque a instituição religiosa cristão, seja católica ou protestante, tratou de interpretar e reinterpretar o que Cristo falou segundo os interesses do clero que, por ser institucionalizado, não tem nada de espiritual, mas radicalmente de mundano. De fato, o que me interessa é a possibilidade de me relacionar com os seres humanos e vê-los como espelho que me dirão, de uma forma ou de outra, por meio de olhares ou palavras, que estou agindo certo. É por isso que me empenhei em ler Sartre, especialmente o "O existencialismo é um humanismo". Lá, naquele texto, Jean-Paul deixa claro que é o outro que me permite a compreensão de minha essência, na medida em que sou um ser histórico e social e me contruo por meio de minhas ações. Todas as minhas ações são pautadas no princípio da liberdade, que é a condenação do humano. Todos estamos condenados à liberdade. E isto, para mim, significa que não há nada exterior a mim mesmo que legitime as minhas escolhas. Devo pautar minhas escolhas no único valor moral que realmente existe, que é a vida. Portanto, Sartre me pacifica com a humanidade, por mais medíocre que possa se manifestar enquanto fenômeno, porque ela é que me proporciona a oportunidade de me ver, mesmo que por um relance, como alguém inteiro. No meio do caminho li Kafka e seu conto "A metamorfose". Gregor se transformou ou foi transformado em um inseto? Essa questão é intrigante para mim, porque entendo que o protagonista do conto não somente se transformou, como quis essa transformação, agindo com um conformismo que me remete a moral do rebanho citada por Nietzsche. O que eu quero fazer de minha vida? Essa questão deve pautar a consciência de todos os seres humanos porque, do contrário, todos nos tornaremos insetos. Não quero ser um inseto, quero ser um humano. Aí vem Sartre e, com ele, a dimensão da coletividade. Cristo certa vez disse que aquele que quiser me seguir deve abandonar pai e mãe. Sartre, em sua biografia, deixa claro suas opções no tocante à família. Nada deve se interpor entre a ética do querer e sua realização. Veja só Gregor, o protagonista kafkiano. Ele nega a sua vida em prol de uma família que, no final das contas, é responsável pela sua morte. Que venha a família com todas as suas alegrias, mas nada de se deixar usar por aqueles que só têm com vc laços genéticos. Meus verdadeiros amigos são aqueles que se importam comigo. Caminhando para o final, releio Camus e o mito de Sísifo. Vou ao fundo do fundo do absurdo da existência humana. Mas sei que ainda é possível dar um sentido à vida, mesmo que ela própria não tenha nenhum sentido. Então me socorro com Sponville e sua felicidade desesperadamente. A idéia de Sponville é muito tocante e radical. Não devo idealizar a realidade. Ela é o que é e pronto. Com relação ao passado, sou grato por tê-lo vivido como uma eternidade e ter tido com ele um grande aprendizado. Com relação àqueles que me odeiam, simplesmente misericórdia, pois nada mais posso fazer a respeito. Em relação ao futuro, o desespero, a ausência de esperança, porque o futuro não me diz respeito e não quero viver minha vida de expectativas. Quero viver minha vida de experiência concretas. Quero dizer sim ao mundo. Quero a salvação! O paraíso está em Cristo, não como Deus, porque não o é. Aliás, como ele poderia ter convencido aquele bando de ignorantes se não tivesse se intitulado Deus? Vejo as parábolas como alegorias de uma realidade de vida, do agora e do presente. Deixo de lado as metáforas de um além túmulo para abraçar o presente em toda a sua intensidade. Ressucitar Lázaro é uma metáfora de ressucitar a si mesmo. Uma leitura cheia de contradições e de interrogações, mas me permito fazê-la não somente em função de meu liberalismo, pois não somente posso como quero pensar o que quiser, mas principalmente porque o dizer de Paulo de Tarso sobre se eu ainda falasse a lingua dos homens, ou se eu falasse a lingua dos anjos, sem amor eu nada seria. Quero amar minha vida e a vida dos outros, sem justificação. Apenas o desejo do amor nutre minha existência e é sua proximidade com minha vida que me movimenta para frente, para a direção do Paraíso aqui nesse planetinha esquecido no último rincão do universo. Quero ser como o saveiro que sai para o mar sem pressa, saboreia as suas águas e brisa e, ao final da tarde retorna para a praia, carregado ou não de peixes, pois isso pouco importa, mas que está disposto, no dia seguinte, a se aventurar novamente por entre as ondas e o verdume, como uma estrela solitária no céu negro, capaz de tingir de coragem e bravura pela vida o coração dos homens. E como diz o sambista: fim de papo!