terça-feira, 14 de junho de 2011

Tradições e novas provocações...


O estudo da Filosofia é vasto o suficiente para encontrarmos diversas tradições filosóficas na história. A tradição mais comum, a que aparece em demasia nos currículos escolares do ensino básico, fundamental e médio, e também no universitário, remonta a Sócrates e Platão.
A tradição socrático-platônica pressupõe a realidade divida em duas esferas. O mundo sensível, que é o mundo em que nós vivemos, é vista por Platão como uma sombra, uma cópia imperfeita do mundo das ideias. Essa narrativa pode ser encontrada no mito da caverna, exposto no livro VII da “República”.
Essa tradição separa o mundo material do mundo espiritual, entendo aqui espírito como as ideias produzidas pela mente humana. O mundo material é uma sombra porque está em constante dinâmica, movimento e transformação, nunca estável e, dessa forma, impossível de ser compreendido e conhecido enquanto conceito e verdade. Nesse mundo o que prevalece são as opiniões (doxa).
É no mundo das ideias onde se encontra a realidade, porque essa por ser verdade e, consequentemente, conforme afirmava Platão, é bela. Na alegoria da caverna Platão compara a ideia suprema do bem e do belo com a luz do Sol porque, segundo ele, essa verdade é tão superior que os humanos não possuiriam palavras e conceitos para nominá-la ou descrevê-la.
O cristianismo se apropriou do platonismo e fez uma transposição do mundo das ideias para o mundo após a morte, o mundo espiritual no sentido religioso, onde encontraria-se a vida eterna. Já o mundo material também é apropriado pelo cristianismo como um mundo transitório, agora configurado com a ideia do pecado e da culpa, inerente ao corpo.
A dicotomia entre o corpo e a alma, para o cristianismo de origem platônica, é fundamental para se entender a tradição filosófica que chega em Descartes com o argumento do cogito (“penso, logo existo”). Nessa argumentação cartesiana, exposta em livros como “O discurso do método” e “Meditações de primeira filosofia”, a mente humana, onde ocorre o pensamento, está independente do corpo. Na verdade, para Descartes, o corpo é visto como uma máquina, uma estrutura sistêmica subordinada ao pensamento e todo o processo de conhecimento passa fundamentalmente pelo cogito.
Nesse sentido, o que se encontra na maioria dos manuais de Filosofia, é a presença de uma tradição filosófica, que começa em Sócrates e Platão, passa pelo cristianismo medieval e consolida-se com Descartes no século XVII, que apresenta uma concepção imaterial do pensamento e, do ponto de vista ético, subordinando os sentidos e as emoções, como formas de apropriação do conhecimento, a racionalidade do intelecto.
Na contramão dessa tradição, encontramos o filósofo judeu de origem portuguesa, que passou a viver na Holanda para fugir das perseguições religiosas católicas na Península Ibérica e luteranas na Alemanha, no território do antigo Sacro Império Romano Germânico, chamado Baruch (Benedito) Spinoza (Espinosa).
Esse intelectual e filósofo moderno, pois viveu no século XVII, que é o mesmo século de Descartes e de Galileu, recupera uma tradição materialista que vem da antiga Grécia, de Demócrito, com sua teoria atômica, e de Epicuro, com seu hedonismo, também chamado de epicurismo.
Vale à pena recordar o que dizia Demócrito. Para ele, o mundo, que podemos hoje entender por universo, por natureza, é constituído exclusivamente de átomos. Esses átomos se juntam conforme seus tamanhos e formas, dando origem aos seres, animados e inanimados. Nesse sentido, para Demócrito, não existe vida após a morte, porque esta é simplesmente a desintegração atômica dos seres vivos.
Nessa tradição materialista, durante o período do helenismo, surge Epicuro que funda uma escola em Atenas chamada de “O jardim”. Epicuro afirmava que não nos devemos preocupar com a morte, porque enquanto estamos vivos ela não veio e, quando morremos, já não estamos mais vivos. Ele até podia acreditar nos deuses, mas esses eram absolutamente felizes e não se preocupavam com a humanidade, não importando qualquer tipo de oração ou sacrifício para pedir uma intervenção divina no mundo mortal.
Tanto Epicuro como Demócrito acreditavam em uma força vital, extremamente forte, existente na natureza. Essa ideia de uma força vital aparece em Spinoza com a ideia de connatus. Spinoza afirmava que os seres humanos possuem dentro de si uma força vital natural, presente em toda a natureza, uma força que permite a pulsão da vida, o nascimento dos seres vivos.
Entendia que Deus era a própria natureza e, desta forma, nós não podemos acreditar em Deus, mas sim, conhecer Deus, e isso quer dizer que Deus se manifesta como uma totalidade (monismo) em todos os seres singulares, na vitalidade existente dentro de cada um.
Para Spinoza essa força vital faz a natureza se movimentar e existir.
Do ponto de vista ético, tal preceito permite analisar o ser humano em seus comportamentos sociais, como conhecedores ou não dessa força vital, e isso significa dizer que os humanos têm a possibilidade sempre de reverter a tristeza em alegria, de tal maneira que é só necessário permitir a manifestação de Deus, da própria natureza, a partir da noção de uma força vital dentre de cada um.
Para Spinoza tudo era determinação e a liberdade está em conhecer o que a natureza estipula para os humanos. Nós seremos livres se dissermos um “sim” para a vontade da natureza. Essa forma de pensamento reduz a importância da racionalidade como determinante de escolhas, conforme pode aparecer em Descartes. Não é o intelecto que comanda o ser humano, mas sim a força vital do desejo que pulsa em sua própria natureza.
Essa pulsão do desejo é mal vista pela tradição socrático-platônica, pelo cristianismo e pelo cartesianismo, pois consideram a verdade do corpo e da natureza como sacrílegas e heréticas. O objetivo dessa tradição é anular o que há de natural dentro e fora de nós, buscando um tipo de ascetismo, de puritanismo que afeta nossa vida em sua intensidade. A rendição aos princípios do mundo das ideias é a derrota frente a um projeto histórico-cultural que se assemelha a um tipo de assepsia e limpeza que não é possível atingir. Como resultado dessa tentativa temos a construção de um mundo racionalizado pela lógica do capital e da eficácia, burocratizado e administrado como são as empresas, onde os indivíduos são peças de uma grande engrenagem, a serviço de objetivos que não são deles e que, em última instância, não são nem dos detentores do capital, que são levados a práticas cotidianas visando a acumulação material em nome de uma felicidade impossível.
Essa prática histórica gera um processo neurótico, de alienação da realidade e de negação da força natural no interior de cada ser humano. Essa força interna é chamada por Schopenhauer de “Vontade”, uma força invisível que está presente em toda a natureza e que movimenta o universo e, com ele, a própria humanidade. Spinoza irá dizer que mesmo que o indivíduo pense que está agindo racionalmente, na verdade ele está sendo impulsionado pela força universal, esse Deus presente em todas as coisas. Porém, como o objetivo do racionalismo é o controle das emoções, ocorre que as motivações são racionalizadas e trancadas no inconsciente, impedidas de se manifestarem. O desespero que esse vazio existencial determina lota os templos religiosos de fanáticos que buscam por um Deus pessoal, capaz de interferir na vida cotidiana, que não existe.
Não adianta se ajoelhar e erguer as mãos para o céu, pois o céu não existe. Copérnico, há mais de 500 anos atrás, provou que a Terra não é o centro e que o que se pensa estar em cima é nada mais do que o Espaço, repleto de planetas, estrelas e galáxias. Como é bizarro ver alguém falando com o nada. É quase um exercício de loucura individual que, no contexto das religiões, torna-se loucura coletiva.
Em Nietzsche a questão da moral torna-se fundamental. O pensador alemão procura mostrar que a moral foi criada historicamente pela humanidade, a partir de instituições sociais como a religião ou o Estado, para condicionar a vontade de potência que deveria reger nossas atitudes enquanto seres humanos. A vontade de potência nietzschiana, presente no desejo de avançar perante a vida, de assumi-la plenamente em toda a sua dor e alegria, é o que nos faz sentirmos vivos e existentes. Negar a dor ou a alegria é uma forma de se encontrar morto em vida.
Nietzsche afirma que o homem é como uma corda, que se encontra entre o animal e o além do homem. O animal é a força vital em toda a sua pureza, da qual escapamos por meio do ego e da cultura, que Freud irá chamar de superego. Já o além do homem é alguém, se isso existe, que se desvinculou de toda a moralidade imposta pela sociedade e que cria suas próprias regras, com coragem e determinação, buscando dentro de si o que ele é de verdade, suas vontades e desejos, sem escrúpulos ou terrores.
Essa manifestação dionisíaca em uma sociedade repleta de imposições e castrações só pode ser exercida e exteriorizada por meio da arte, na sua capacidade criativa do novo, no seu desvendamento de instâncias de alegrias inimagináveis, de sonhos insuperáveis. O além do homem é algo pelo qual deveríamos procurar e alcançando, utilizarmos do que há de apolínio e, portanto, de belo, para marcar nossa presença no mundo.
Não se trata aqui de voltarmos ao estado natural selvagem, apesar de que não há nada no mundo que prove que tal estado não nos traria alegria e felicidade, pois em um mundo em que o que há de selvagem dentro de nós foi calado, a alegria e a felicidade parecem estar muito distantes. Trata-se, na verdade, de associar-se o dionisíaco, enquanto vontade de potência e negação da moralidade imposta ao apolínio, harmônico e belo, que se manifesta no ato da criação artística, e que se deverá manifestar em qualquer ato de criação. Desta forma iremos construir um mundo onde a liberdade não será mais um privilégio de poucos, mas uma realidade inerente a todo o ser humano. Um mundo onde a educação estará voltada para a imaginação e a criação, sem podas ou transferências, sem imposições coercitivas de toda ordem, onde a individualidade será respeitada porque, só haverá igualdade, no momento em que cada homem ou cada mulher falará com o outro do mesmo patamar, com os olhos nos olhos do outro.
Essa utopia que nasce com Spinoza, continua em Schopenhauer e Nietzsche, mas que possui outros defensores na contemporaneidade, assim como conheceu seus imaginadores na antiguidade grega e romana é, como toda a utopia, algo inalcançável mas, nem por isso, devemos negá-la. Deve servir de paradigma, de referência histórica para a busca de uma vida plena, mais livre e feliz.
Mas como venho escrevendo sempre, essa tal felicidade só pode ser encontrada no âmbito do possível, sem esperança e idealização. Como disse Sponville certa vez, é melhor uma verdade dolorosa do que uma felicidade idealizada.
Fiquemos com a realidade, tal como ela nos é sugerida pela vida, porque ela é a própria vida que não tem mais a nos oferecer do que a nossa própria existência. Desejar uma vida plenamente feliz só é possível no cemitério. Se alguém quiser ser realmente, na sua totalidade, feliz, deve se matar o mais rapidamente possível, porque viver é também compartilhar com os outros as dores e sofrimentos que a vida nos oferece sempre, temperada com pitadas de alegria que só serão ampliadas na medida em que nos dispusermos a retornar sempre, e repetir tudo de novo, em sua absoluta intensidade, afirmando e reafirmando a vida em sua plenitude, isto é, sabendo a dor e a delícia de ser o que se é.

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