quinta-feira, 7 de julho de 2011

Mantenha fora do alcance de crianças

A peça "Mantenha fora do alcance de crianças" está em cartaz de quinta a domingo, sempre as 21 horas, no Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo, capital. O diretor Rodrigo faz um trabalho primoroso com os atores, em um cenário metalinguístico que pretende sugerir o interior e o exterior de uma casa, que pode ser relativa a qualquer classe social, mas que na peça nos remete ao imaginário da classe média brasileira, bem contextualizado. O texto da Nicole é singular, onde estão presentes diálogos, falas e provocações que sempre nos remete a algum passado acontecido ou a um futuro por acontecer.
Digo isso porque nossas ações não são o resultado do livre arbítrio, ou seja, não há uma separação entre corpo e mente, no sentido de podermos, idealizadamente, decidir mentalmente controlar nossas emoções e sensações, que são produto de nosso corpo. A indissociabilidade entre corpo e mente sugere que possuímos pulsões, resultado de uma biologia e de uma química que é misturada a um determinado contexto cultural e social em que vivemos, e que nos causa desconforto, que nos faz sentirmos ameaçados. Dessa forma, sob ameaça, agimos reativamente, ou seja, respondemos defensivamente àquilo que achamos que nos ameaça, em qualquer sentido, até mesmo no sentido de estarmos frustrados em relação à vida.
Não faz parte dessa lógica que as pulsões são necessariamente negativas, más, como quer uma certa tradição filosófica que nos remete a Hobbes, que dizia ser o homem o lobo do próprio homem, ou então a Kant, que acreditava na capacidade da razão controlar os impulsos corporais.
O que faz parte dessa lógica é uma ideia que perpassa o pensamento de Spinoza e Nietzsche, que não é niilista, como a peça também não é, ou seja, algo que se propõe à destruição da realidade e dos sonhos. A ideia é que se não nos sentimos ameaçados e estamos em uma situação de tranquilidade, nossas pulsões corporais não são destrutivas, pelo contrário, pois quando nos encontramos em uma situação onde podemos ser nós mesmos, agindo de acordo com o nosso querer, ampliando nossos horizontes, realizando sonhos e vontades, por exemplo, nosso corpo não sentirá necessidade de acionar o ódio ou a raiva em direção de uma outra pessoa.
O que causa a violência e a agressão é o fato das pessoas se sentirem ameaçadas por meio da repressão ou de uma violência externa ou de qualquer outra situação precária qualquer, produzindo em nós um querer reativo, de defesa, que se manifesta por meio da agressividade.
Na peça a família se mostra desintegrada, desconfortavelmente frustrada, como resultado de uma história singular, mas que pode ser a história de todas as famílias, e isso promove uma sensação de ameaça sobre si por parte do outro. O parente ou o amigo presente na festa é uma ameaça a integridade individual, porque não permite que cada um realize o que realmente quer realizar e, desta forma, o que poderia ser uma alegria se transforma em um inferno. Algo quente, mas desconfortável, como é o verão com altas temperaturas. Há uma busca de negação de si mesmo, como quando uma personagem afirma que quer mudar a cabeça e manda sua empregada fazer um artifício estético qualquer no cabelo, ou então quando o bêbado pega o microfone, em uma espécie de karaokê para si mesmo, e se é para si mesmo e não interagindo com os demais na festa, é também uma negação de si mesmo, e começa a querer lembrar de sambas antigos refastelados de melancolia, o que se torna até harmonioso com o que está acontecendo dentro da casa.
Porém, quando ficamos na expectativa de uma verdadeira explosão, porque ninguém aguenta mais as constantes agressões verbais e corporais, vem a catarse, que é o resultado do desenrolar da própria peça, onde todos os atores urinam ao mesmo tempo, jogando fora aquilo que está dentro do corpo mas não pertence a ele, em um reencontro com si mesmo, uma purgação por meio do reconhecimento da vontade de cada um em continuar vivendo em família, mas tento consciência que essa vivência é sempre conflituosa e que, para minimizar o conflito, é de fato necessário uma libertação de padrões de moralidade repressores e castradores.
Enfim, viver em família significa sofrer sempre algum tipo de repressão, mas isso não significa que não podemos nos libertar dessa repressão ao olharmos para dentro de nós mesmos e verificarmos todos os contextos, tanto biológicos e químicos quanto culturais e sociais, em que estamos enredados, e darmos asas a um lançar-se nos ares com vontade de potência e nos libertarmos das amarras que nos oprimem. O conflito é inerente à vida familiar porque a família é uma instituição repressora, que contraria o desejo que pulsa em nosso corpo. Quando permitimos ao corpo falar e se expressar, quando permitimos que nossa vontade se realize e, com isso, não nos sentimos mais frustrados ou ameaçados, não precisaremos mais utilizar da violência ou da agressão para nos relacionarmos com os demais, pois a alegria da satisfação superará todos os obstáculos morais repressivos que se manifestam no cotidiano da vida familiar.

Um comentário:

  1. Oi Paulo,
    Tenho visitado seu blog com certa frequencia, mas somente hoje me animei a lhe dar os parabéns pelo trabalho e, também, agradecer as dicas que vc deixa nas aulas de Filosofia e que eu aproveito todas.
    Gosto muito de suas contribuições.
    Um abraço
    Suely

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