quarta-feira, 8 de julho de 2009

Da amizade e do conhecimento


Eis um quadro do pintor impressionista Claude Monet. É um campo de papoulas. Flores em carmim, vivas e exuberantes como a amizade. Não concebo o ato da aprendizagem do conhecimento sem a presença constante da amizade pelos que o compartilham comigo. Em minha prática docente procuro sempre cultivar a amizade em relação aos meus colegas e aos meus alunos. O afeto, oriunto do gesto amigo, se traduz pela aceitação do diálogo, da interlocução, prazeirosa e alegre, em diversos momentos do convívio.
Sem a amizade o processo de aprendizagem se mostra pouco virtuoso, duro e difícil, porque o outro, uma necessidade de interlocução, se torna mudo e não disposto a compartilhar o saber/sabor da arte de conhecer.
Em minha adolescência aprendi a amar o saber por intermédio de minha querida Alaíde Taveiros, a Tia Lá, como meus primos a chamavam. Uma mulher adiante do seu tempo, que se bacharelou em Direito pelo Largo de São Francisco em 1939 em uma turma predominantemente masculina, em meio a uma sociedade patriarcal, mesmo na metropolitana São Paulo dos anos 1930, tão bem descrita por Mário de Andrade em seu livro de poesias "Paulicéia Desvairada".
Oriunda do Vale do Paraíba, da cidade natal de Monteiro Lobato, Taubaté, a Tia Lá era uma figura generosa. Doutorou-se com uma tese sobre os "Quadros Econômicos" do fundador da fisiocracia francesa François Quesnay por pressão da academia, a Universidade de São Paulo, em plena ditadura militar. Teve como referência epistemológica o livro magistral de Michel Foucault "Les môts et les choses", que hoje encontra-se em minha biblioteca. Essa mulher baixinha e brilhante leu Foucault no que há de mais interessante em sua obra, o trabalho de arqueologia do saber, antes mesmo desse autor morto em 1984 adentrar nas universidades brasileiras. Tornou-se professora assistente do historiador da economia Paul Hugon. Diante de um público pretensamente militante, pois encontrava-se no momento em plena ditadura militar, relutou em ceder espaço das suas aulas às atividades panfletárias. Assegurava, em pleno regime de excessão, a excelência do conhecimento, levando com rigor e seriedade o processo intelectual de construção do saber. Não que fosse adepta do regime militar, muito pelo contrário, mas achava que o espaço da militância devia se dar fora da sala de aula. Não admitia fraudes no conhecimento, perda de oportunidade de conhecer e formar intelectuais em nome da mobilização estudantil. Se dispôs a participar de passeatas no centro de São Paulo em nome da democracia, mas que isso se desse fora do horário de aula!
Lembro-me de inúmeros domingos em que descia para Santos, para visitar meus tios e primos que moravam em São Vicente e trazia, religiosamente, o Suplemento Cultural do Estadão. Eu tomava o ônibus no canal 2, perto de minha casa, e ia para a casa de meus tios passar o domingo ao seu lado. Meus primos iam para a praia do Itararé, que ficava na frente do apartamento e sempre me perguntavam: Paulinho, você não vai à praia conosco? Sentado ao lado da Tia Lá, recusava o convite prazeirosamente, pois tinha ao meu lado alguém muitíssimo mais importante do que uma praia ensolarada. Tinha Tia Lá e seu suplemento cultural! Eu respondia à pergunta de meus primos displicentemente: É claro que irei à praia, mas no final da tarde, para jogar futebol! Ninguém entendia nada.
Em São Paulo, o apartamento da Tia Lá era um primor. Ficava na Rua das Palmeiras, em pleno Santa Cecília. Ia visitá-la frequentemente e ela, como uma boa macrobiótica, me oferecia no almoço arroz integral, suco de laranja com bagaço, uma enorme variedade de legumes e uma pitoresca gelatina de carne! Isso tudo regado a levedo de cevada...
Mesmo após minha vinda para o interior de São Paulo, viajava para São Paulo sempre que podia, pois sua opção pelo pragmatismo (ela estava traduzindo John Dewey antes de sua morte) me possibilitou uma aproximação com a semiótica de Charles Sanders Pierce, que tanto me ajudou na compreensão do mundo linguístico do século XX.
Em 1985 Tia Lá se desintegrou. Digo isso porque uma vez perguntei a ela o que pensava sobre a morte. Ela me respondeu, quase que epicuramente, que a morte é simplesmente a desintegração molecular e a eternidade se encontra nos posteriores encontros e simbioses de nossas moléculas e átomos com as moléculas e os átomos de outros seres da natureza. Estaremos sempre presentes nesse planeta por meio da bioquímica. Que materialismo mais corajoso, já que vinha de uma família tradicionalmente católica.
Restou-me a lembrança de nossas conversas, seu afeto e carinho por mim e a minha eterna gratidão por sua imensa generosidade.
Voltei a encontrar a amizade e sua relação com o conhecimento com meu querido, agora octagenário, José Cardoso de Freitas. Um intelectual perdido nos rincões da serra da Mantiqueira. Historiador da Roma republicana (leu Tito Lívio no original em latim), fez seu mestrado sob a orientação do baluarte da historiografia clássica no Brasil, o já falecido Ulpiano. Nossas conversas no antigo bar Canecão e nossos passeios ao redor da praça Joaquim José, aqui em São João da Boa Vista, revigorou meu gosto pela História. Foi ele quem me incentivou a penetrar no universo da memória coletiva e do passado a ser descoberto. Minhas posições na época, no início dos anos 1980, eram sabidamente de esquerda. Uma esquerda radical como ele me falava, pois vinha de um ensino médio de militância estudantil na UBES de Santos. Estávamos no final da ditadura militar e ele, em sua sábia paciência, apostava na social democracia como via de solução dos problemas políticos nacionais. Eu pensava na época na revolução proletária! Mesmo diante de conflitos em relação às nossas idéias políticas, nutrimos naquela época e até hoje uma profunda amizade onde a lucidez e a transparência se faziam necessárias e fundamentais para que pudéssemos construir juntos o conhecimento. Ainda hoje o encontro, solitário, nas ruas da velha São João. Apesar da idade, ainda se mantém disposto ao diálogo e suas citações factuais da História me ajudam a ilustrar o cenário do passado... É com gratidão que lembro-me aqui desse querido amigo.
Já adulto, tive a oportunidade de conhecer há 10 anos atrás, na PUC de Campinas, uma mulher magnífica que se tornou minha orientadora no mestrado em Filosofia. Minha querida amiga e companheira no campo do conhecimento filosófico, Maria Cecília Maringoni de Carvalho. Suas aulas sobre Searle e a filosofia da linguagem, suas palestras sobre o utilitarismo em suas vertentes contemporâneas e suas abordagens sobre o campo da Ética, tanto em sala de aula, como em suas palestras, dignificam a atividade do magistério. Sua generosidade é grandiosa. Apesar de ser extremamente atarefada, presenteou a Unifeob com um artigo brilhante sobre o cuidado que devemos ter com os animais, quando ainda na instituição não se falava da criação de um comitê de Ética. O artigo foi publicado no Caderno de Ciências Sociais e sua palestra no Centro Cultural foi assistida por mais de duzentas pessoas, entre alunos, professores e público em geral.
Maria Cecília é um paradigma para a Filosofia brasileira na atualidade. Suas inúmeras participações em bancas de mestrado e doutorado em diversas universidades brasileiras demonstram o carinho e a importância dedicados a ela por todos aqueles que têm na Filosofia um campo de conhecimento privilegiado. Ela tem, generosamente, acompanhado, mesmo que à distância, meu trajeto intelectual e pessoal por todo esse período de dez anos em que somos amigos. Quando eu fazia minha pós-graduação em Política e Relações Internacionais em São Paulo, não deixava de ir me ver. Levava-me para comer meu prato predileto, o atum grelhado, em Higienópolis. Eram momentos gastronômicos saborosos, regado com discussões filosóficas que, é claro, ela dirigia e eu, humildemente, usufruia. Verdadeiros "symposiuns"... Minha querida professora, como a chamo sempre que nos falamos, é para mim uma referência fundamental para a compreensão da importância da amizade para o conhecimento.
Para essas três pessoas magníficas e importantes em minha vida pessoal e intelectual, escrevo essas linhas em meu blog com o intuito de homenageá-las e, ao mesmo tempo, entusiasmar a todos os que lerem esse texto a se deixarem abertos às possibilidades de relacionamento humano digno e significativo, e não se deixarem levar por relações sociais e pessoas que nada acrescentam em nossas vidas. Cultivemos a virtude da amizade e utilizemos a mesma para agregar valor em nós próprios e, desta forma, nos tornarmos seres humanos melhores. Aos três queridos mestres meus mais sinceros e profundos agradecimentos. Eternamente...

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