domingo, 12 de julho de 2009

Memórias da cana


Estou de férias!!! De repente, sexta passada, fui para São Paulo ver minha filha e, como sempre, fomos ao teatro. Fomos ao teatro da companhia "Os fofos encenam" ver a peça na qual ela foi estagiária, "Memórias da cana". Simplesmente impressionante!!!
A direção é do Newton Moreno, não precisa dizer mais nada. Porém, como esse é o meu espaço para escrever, direi algumas coisas. Logo que chegamos o cenário me impressionou muito. Uma casa grande, no estilo daquelas casas descritas pelo Gilberto Freyre no livro "Casa grande e senzala". O público fica ao redor do espaço onde a peça é encenada. O palco, central, é dividido por cortinas transparentes que simulam os cômodos da casa e, no centro, uma grande mesa onde os atores interagem. No início da peça os atores, devidamente caracterizados em seus personagens, encontram-se nos cômodos ruminando palavras, digressões sobre o caráter de suas personalidades, pensamentos em voz alta sobre a visão que cada um tem daquela família patriarcal.
Não vou me alongar na descrição, mas a família patriarcal é um traço histórico marcante no nordeste brasileiro, onde a figura do pai, o senhor de engenho e proprietário de terras exerce uma função de poder desmedido, quase absoluto, sobre a esposa, os filhos, os agregados e, no caso de ser o contexto anterior à 1888, em relação aos escravos.
A peça é inspirada na obra de Nelson Rodrigues "Álbum de família", escrita nos anos 1960 e dirigida como crítica à classe média carioca. Porém, os arquétipos da família patriarcal permanecem e, nesse caso, a trasposição do texto rodriguiano para o interior pernambucano não interfere em nada na percepção psicológica e sociológica dos valores dominantes.
As personagens são estereótipos de singularidades humanas que representam o contexto da família patriarcal.
O pai, a personagem Jonas, é um homem autoritário e que domina a família por meio da violência física e moral. É um hipócrita, pois ao mesmo tempo que exerce uma vigilância constante sobre o comportamento dos parentes, "compra" de um cafetão meninas adolescentes de 13 ou 14 anos, virgens, para deflorá-las na própria casa, sendo que a esposa e os filhos sabem do fato. Ele próprio, em uma noite em que estava bêbado, estupra a própria cunhada. Na verdade, existe um desejo incestuoso do pai em relação à filha Glória, que foi enviada para um internato católico, como um repositório de virtudes castas, mas que é expulsa do mesmo por ter tido um envolvimento homossexual com uma das colegas. Parece-me que, na perspectiva psicológica, o pai deflora adolescentes negras virgens por não poder deflorar a própria filha. Esse é um aspecto trágico da peça.
A esposa, da qual não se sabe o nome, pois é apenas chamada de "senhorinha", é uma mulher sensual mas que, pelo fato de ter casado sem amor ou paixão, torna-se fria no casamento, servindo apenas de procriadora da prole que irá, um dia, herdar a fazenda. "Senhorinha" teve um envolvimento incestuoso com um dos filhos, Nono, que enlouqueceu. Porém, a loucura de Nono parece-se como uma convulsão dionisíaca, um espetáculo de sensualidade que a todo instante percorre o cenário e as personagens.
Há uma tia, a Ruth, solteirona, que foi estuprada por Jonas e que vive exclusivamente para ele, tratando-o como um rei. Mulher ressentida, pois é vista por todos como uma mulher feia, sem nenhum atrativo sexual, sofre em sua solidão e em sua dependência em relação à família que, na verdade, a desconsidera. Ruth é uma personagem emblemática, enterrada em seu catolicismo tradicionalista e, ao mesmo tempo, recalcada por sua condição de mulher indesejada sexualmente.
Um dos filhos, Edmundo, recém-separado, viveu três anos com a esposa sem tê-la tocado. Na verdade, Edmundo nutre um desejo incestuoso em relação à mãe e, desta forma, odeia o pai. Contardo Calligaris no último Café Filosófico discorreu sobre o ciúme inconsciente do filho em relação ao pai pelo fato deste ter tido relação sexual com a mãe, desejada edipianamente, para que o próprio filho nascesse. Quando Edmundo fica sabendo da própria mãe que ela teve um amante, se porta como se consentisse o pai para que este matasse o violador da "sacrossanta" castidade materna que, no fundo, ele queria só para si.
Guilherme, que seguia os passos sensuais do pai, mulherengo e viril, entra para o seminário e se automutila, castrando-se. Retorna para casa para anunciar a relação homossexual de Glória e sua expulsão do colégio interno. É uma figura patética, pois sua expressão de alívio em relação ao desejo sexual, já que é agora castrado, se confunde com a própria amargura de ter renunciado ao mundo.
Glória, a filha casta, nutre um desejo incestuoso em relação ao pai, que compara com a figura de Jesus Cristo crucificado. Recusa-se a reconhecer tanto a hipocrisia paterna quanto a realidade cruel das relações familiares. Sua morte, assim como a morte de Edmundo, revelam que a idéia de família presente não corresponde às práticas cotidianas de violência e agressão.
Enfim, não quero contar a peça como um todo mas, a partir dessa singela descrição das personagens e de suas relações instigar o leitor do meu blog a ir assistir ao espetáculo e, ao se sensibilizar com a atuação brilhante dos atores, enxergar-se no patriarcalismo presente no palco, visto que o mesmo, como valor dominante da sociedade brasileira, impõem-se ainda no presente em uma dimensão disfarçada de liberdade e respeito à alteridade mas que, na verdade, transforma o espaço familiar urbano ou rural do Brasil atual em um palco de inquietudes e relações de poder e dominação que se antagonizam com um desejo idealizado de construção de uma sociedade mais justa e capaz de tornar as pessoas felizes.
Parabéns ao grupo "Os fofos encenam" pela coragem de, ao adaptar Nelson Rodrigues, produzir uma obra que no atual momento do contexto teatral brasileiro, passa a ser uma referência de dramaturgia e interpretação.

2 comentários:

  1. Pai,
    Que bonito o texto que vc escreveu! Fico emocionada, sabia? Depois de tanto trabalho, ver vc assistindo a peça com tanto interesse é um presente para mim!
    Foi ótimo ter vc por aqui mais uma vez e melhor ainda ter a sua companhia para dividir momentos tão intensos como esse.
    Vou encaminhar seu texto para o pessoal da companhia, tá?
    Te amo!

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  2. Graaande Paulo Souto, meu amigo de fé e de profissão!
    Vida longa ao seu blog! O
    meu (http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/blogs/ ) já vai para cinco anos!
    Abraço

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